ISABEL SALGADO

Isabel do Vôlei, assim como Gal Costa, viveu para ver o fim do governo Bolsonaro

Relembre aqui momentos de luta da ex-atleta que estava na equipe de transição de Lula; o orgulho por sua filha, Carol Solberg, a carta à colega de extrema-direita Ana Pula Henkel entre outros

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Isabel Salgado, a Isabel do vôlei nos deixou. Para além de suas inúmeras conquistas esportivas, tanto no vôlei de quadra quanto no de praia, ela teve uma vida intensa. Formou filhos campeões e nunca deixou de dar sua opinião.

Ela se dizia “horrorizada” com o Brasil vulgar, preconceituoso e autoritário de Jair Bolsonaro. Quando sua filha, a também atleta, Carol Solberg, sofreu ameaça de ser suspensa e multada em até R$ 100 mil por gritar “Fora, Bolsonaro”, após premiação em vôlei de praia, ela disparou em entrevista ao Globo:

“A manifestação da Carol foi pra lá de lícita e legítima numa entrevista. Eu estranharia se fosse diferente. Eu me envergonharia se ela berrasse a favor de um torturador. Ou enaltecendo uma pessoa que agiu covardemente contra outros. Ou se ela fosse homofóbica ou racista. Eu me orgulho de meus filhos. Do caráter bacana deles. Eu estranho a indiferença das pessoas diante do que está acontecendo no Brasil. Na nossa cara”, afirmou.

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Equipe de transição

Isabel estava na equipe de transição que vai colaborar com o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na área esportiva. Ao seu lado, estão nomes que certamente irão honrar sua memória, como a também ex-jogadora de vôlei, Ana Moser e o ex-jogador de futebol, Raí, que, atualmente, fazem parte da ONG Atletas Pelo Brasil, que cobra políticas públicas para o Esporte.

Constam também da lista Marta, ex-jogadora de basquete; o ex-paratleta Mizael Conrado, atual presidente do Comitê Olímpico Paralímpico Brasileiro; e Verônica Hipólito, atleta paralímpica.

Com eles, atuando no campo político estão o prefeito de Araraquara, Edinho Silva; Jose Luís Ferrarezi, ex-vereador de São Paulo e Nádia Campeão, ex-vice-prefeita de São Paulo que tocou o projeto da Copa do Mundo de 2014 em São Paulo, na gestão de Fenando Haddad.

Carta sobre racismo

Em 2020, Isabel escreveu uma carta aberta à colega de extrema-direita, Ana Paula Henkel, em que discorre sobre o racismo e a postura do então presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo. No texto, a ex-jogadora demonstra, com elegância, clareza e uma extrema capacidade de análise, questões sobre o racismo.

No momento de sua morte tão precoce, vale reler o texto. Um documento firme e respaldado de uma grande brasileira, cidadã do mundo, que nos encheu de orgulho dentro e fora das quadras. Veja abaixo:

Carta aberta para Ana Paula Henkel

Ana Paula, depois de ver algumas de suas postagens, tive vontade de te responder. Como nunca tive paciência para redes sociais, fui deixando passar. De mais a mais, não há como esquecermos o fato de que as redes estão aí para dar voz a todos: muitas pessoas fantásticas e muitos.... Esse é o preço da chamada democracia digital - que sempre deve ser debatida, é claro -, mas vamos ao que interessa no momento. Antes, preciso admitir também que sempre me senti constrangida quando lia as suas postagens. 

É que o seu nome está ligado ao vôlei, esporte que pratiquei durante muitos anos e, infelizmente, muitas pessoas generalizam esse tipo de fala e me perguntam se as jogadoras de vôlei são, na sua maioria, de extrema direita. Nesses momentos, eu sempre tento explicar que você está longe de representar um perfil do vôlei feminino brasileiro. E que, na verdade, o vôlei, assim como a maioria dos campos profissionais e atividades, não pode ser enquadrado em algum perfil ideológico. Explico, também, para essas pessoas, que talvez pelo fato de você ter se casado com um americano branco, você tenha sentido a necessidade de se alinhar a uma branquitude, que tem como uma de suas características principais a incapacidade de perceber o seu lugar de privilégio, uma branquitude que naturaliza o lugar de poder branco e torna a supremacia branca uma norma. Afinal, sabemos que ser imigrante por essas bandas daí não é muito fácil, ainda mais com um biotipo latino.

Durante o período colonial, o psiquiatra Frantz Fanon explicou bem o surgimento e a formação desse desejo de identificação com o opressor entre muitos colonizados. Trata-se de uma neurose que o leva a um comportamento adoecido e alienado, por não conseguir lidar com a realidade que o cerca. A história nos ensina que o colonialismo acabou, mas ela também nos mostra que ele permanece com roupas neocoloniais. O vídeo que postou da jovem negra é exemplar de como permanece essa alienação.

Temos aqui no Brasil um exemplo caricatural desse comportamento desequilibrado: o presidente da fundação Palmares. Por isso, te sugiro prestar atenção ao que está acontecendo a sua volta. Existem muitas pessoas que não conseguem sair desse comportamento negacionista do racismo, que se manifesta de muitas formas e em muitos graus; da mais sutil negação à mais exacerbada patologia, que leva o sujeito dizer que a escravidão foi uma circunstância benéfica para os negros, como fez o senhor Sérgio Camargo.

Você posta constantemente frases e ideias que destilam muito preconceito. Mas o seu último post foi a gota d'água e me chocou e revoltou pela profunda ignorância e irresponsabilidade. Sua falta de conhecimento a respeito do racismo e do que ele significa são atrozes. Infelizmente, o racismo existe no Brasil, nos EUA e no mundo, e muitas pessoas ainda são incapazes de enxergar uma realidade que grita com todos os pulmões. Se você quer usar dados estatísticos como argumentos, procure fontes sérias e não tendenciosas. Aí você vai entender que o racismo é um dado estrutural, que atua na política, na economia e na subjetividade, como explica tão bem o filósofo Sílvio Almeida.

Sua apologia ao governo Trump reflete muito mais o seu mal estar e quiçá o desejo de pertencimento a uma sociedade que você imagina respaldar apenas valores WASP, uma sociedade que precisou mostrar ao mundo as mais assustadoras formas de violência racial, até surgirem as primeiras grandes mudanças com Martin Luther King. Felizmente, o racismo não só empobrece o ser humano, mas também produz cada vez mais força e resistência. E é isso que está acontecendo nesse momento nos EUA, quando milhões de pessoas de todos os grupos étnicos se unem para demonstrar o seu repúdio ao racismo que ainda atinge sobretudo os negros. 

Observe atentamente a sua volta e verá que, no momento atual, a sociedade americana parece estar no caminho de mais uma mudança e mais uma conquista no rumo da igualdade.

Usando as redes como tem usado, você presta um desserviço no processo de combate ao racismo.

Vidas negras importam!

Isabel Salgado