Buscando uma resposta para os milhares de casos em que pessoas são acusadas ou condenadas injustamente por meio de provas criminais frágeis ou obtidas em desacordo com a lei, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) lançou no final de maio a plataforma Prova Sob Suspeita. O projeto tem como objetivo levantar maiores informações sobre os casos, destinadas ao debate público e à pressão sobre as autoridades para que o sistema de Justiça seja mais rigoroso nesse quesito.
O projeto pretende fazer um dossiê de histórias dessas pessoas inocentes que acabaram envolvidas em processos e condenadas de forma arbitrária. Nesses casos, geralmente as denúncias carregarão elementos de racismo e provas bastante frágeis, como reconhecimento facial por fotos retiradas de redes sociais.
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Um dos casos que inspirou o projeto, e que foi o primeiro a ser colocado no ar, é o de Paulo Alberto da Silva Costa, um homem negro morador de Belford Roxo, no subúrbio do Rio de Janeiro, que aos 36 anos foi acusado em mais 60 processos com base em reconhecimentos irregulares de fotos suas retiradas das redes sociais, impressas, e dispostas nos murais das delegacias.
“Esse é um dos casos mais emblemáticos da falta de controle nos processos de reconhecimento realizados pela polícia. Apesar das acusações, Paulo nunca foi chamado pelos agentes para prestar depoimento, nem mesmo após ser preso. Ele ficou privado de liberdade por mais de três anos, entre março de 2020 e maio de 2023. Foi solto após o julgamento de um habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que o absolveu em pelo menos uma das acusações. Ainda pesam contra ele outros 32 processos”, resume o site do projeto Prova Sob Suspeita.
Outro caso relacionado é o de Carlos Edmilson da Silva, noticiado pela Revista Fórum em 16 de maio passado, mesma data em que o homem deixou a cadeia após 12 anos preso. Ele foi detido em Barueri, na Grande São Paulo, pela Polícia Civil, em 10 de março de 2012 e acusado de ser o maníaco que cometeu crimes sexuais contra 10 mulheres em Barueri e em Osasco entre 2010 e 2012.
Carlos sempre negou ter cometido os crimes. Mas acabou reconhecido por foto por uma das vítimas. Chamado à delegacia para o reconhecimento presencial, foi novamente apontado como o suposto maníaco. Meses depois foi julgado e condenado a 137 anos e 9 meses de prisão em regime fechado.
Doze anos depois, o Ministério Público pediu que o Instituto de Criminalística (IC) da Polícia Técnico-Científica comparasse os DNAs das vítimas com o de Carlos. Em nenhuma instância de investigação isso tinha sido feito antes. A decisão foi motivada por pedido da defesa de Carlos, que é feita de forma gratuita pelo Innocence Project Brasil, uma ONG dedicada a reparar erros judiciais.
Ao G1 Flávia Rahal, diretora da organização, explicou que o fato de o reconhecimento fotográfico ter sido a única prova que incriminou Carlos foi o que chamou a atenção para o caso. Segundo ela, é comum que esse tipo de erro ocorra nessas circunstâncias. O pedido para a revisão, no entanto, havia sido feito há quatro anos.
Os materiais genéticos de cinco vítimas já estavam disponíveis desde a época dos crimes e o de Carlos foi coletado, como manda a lei para o caso de condenados por crimes sexuais, logo que ingressou no sistema penitenciário.
O resultado da análise foi surpreendente. Não só se descobriu que Carlos era inocente, como também que o verdadeiro maníaco, José Reginaldo dos Santos, de 34 anos, estava preso na mesma instituição no interior paulista. Seu material genético foi encontrado nas cinco vítimas que tinham fornecido DNA às autoridades e ele estava cumprindo pena por roubo. Com o resultado dos testes de DNA em mãos, o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) em Brasília finalmente ordenaram a soltura do jardineiro.
Rogério Schietti foi o relator de um habeas corpus em 2020 no STJ que serve como uma base para atuação da Justiça. Na decisão ele apontou que as regras para os reconhecimentos previstas no artigo 226 do Código Penal “não são mera recomendação”, mas uma garantia mínima de que não seja cometida uma injustiça por meio desse instrumento e que procedimentos que não as respeitem devem ser invalidados como prova.
“Nós precisamos ter muito cuidado. Ninguém pode restituir o que alguém perde com uma liberdade que foi suprimida por conta de um ato tão falho. Não há como reparar os anos que uma pessoa passa presa injustamente”, disse o magistrado.
O projeto Prova Sob Suspeita tratará, além dos casos de reconhecimento, de casos de racismo, abordagens policiais e testemunhos de agentes de segurança que condenem pessoas injustamente. Todas enquadradas como ‘provas de memória’. Ao site Ponte, Vivian Peres, coordenadora do IDDD, resumiu a pauta: “a importância dada a essas provas é tão grande que faz que não sejam sequer produzidas outras (…) É possível diminuir os casos de prisões e condenações injustas, se a produção de prova for feita seguindo critérios que primam pela qualidade e não pela tentativa de confirmação de uma única hipótese pré-concebida”.