Na era das redes sociais já se tornou comum a figura do influenciador ou influencer digital, produtores de conteúdo que chegam a se tornar celebridades em diversos segmentos. O sucesso desse tipo de empreitada fez inclusive com que a atividade fosse reconhecida como profissão na Classificação Brasileira de Ocupação. Mas quando a gravação de vídeos e a publicação de postagens se torna uma rotina para crianças, como isso pode afetar o seu bem-estar e seus direitos?
Esta e outras questões relacionadas a um tema ainda pouco debatido no Brasil motivaram um grupo de estudantes de graduação da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo a produzir um estudo sobre o tema "Influencers Mirins". Durante um período de dez dias, foram monitoradas contas-perfis de crianças com idade abaixo de 12 anos que contam com mais de 2 milhões de seguidores no Instagram, subdivididas em três faixas etárias: 0 a 3 anos, 4 a 7 anos e 8 a 12 anos.
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"Ocorre uma possível instrumentalização das crianças por parte de pais ou responsáveis, que muitas vezes também produzem conteúdos como influenciadores, tendo em vista que não são apenas mostradas de maneira constante, sem qualquer tipo de restrição com relação à quantidade ou à natureza do conteúdo postado, mas também são utilizadas para divulgação de marcas explícita ou veladamente (muitas vezes marcas próprias dos pais ou no nome da criança)", aponta o documento de resumo do estudo (policy paper).
A professora da FGV Eloísa Machado, uma das coordenadoras do trabalho junto com a também docente Vivianne Ferreira, explica que a análise se insere no âmbito do Projeto de Prática Multidisciplinar "35 anos do ECA: Avanços e retrocessos - Pesquisa, diagnóstico e incidência". "A ideia era avaliar o quanto essa lei [o ECA] ainda tem capacidade de regular problemas novos que se apresentam", observa. E o levantamento mostrou que ainda há muitas questões sem resposta do ponto de vista legal quando se fala dos influenciadores mirins.
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Trabalho artístico?
Como é um tipo de atividade relativamente nova, ainda não existem muitos estudos aprofundados sobre os impactos que essas crianças podem ter em função da sua exposição. O panorama atual é bem distinto, por exemplo, daquele vivido por atores e atrizes mirins do cinema ou da televisão.
"Analisando histórias antigas de artistas da TV que viveram essa exposição, o que vemos é um cenário mais exacerbado de exposição do que era com a televisão. Um cenário com bem menos regulação e que hoje é parte integrante da nossa cultura, por isso, se torna pouco percebido", avalia Luiza Nicchio, uma das autoras do estudo, fazendo referência ao fato de que, como quase toda a população adulta hoje acessa redes sociais, a inserção de crianças nesse meio passa a ser vista como algo quase natural.
A pesquisa estuda uma analogia entre a atividade de influencer e o trabalho infantil artístico, uma "exceção" contemplada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em seu artigo 149 que estabelece, no entanto, que será preciso alvará ou portaria judicial sempre que a criança, ou adolescente, participar do que é considerado “espetáculo público”.
Como se destaca no paper, a legislação não cita expressamente a permissão ao trabalho artístico infantil, "havendo apenas a disposição de que algo do gênero seria permitido e delimitado pelo juiz no caso concreto ou pelo Judiciário, de forma geral, mediante Portaria". "O ponto do trabalho é realizar uma aproximação com essa suposta exceção da lei que o ECA trata, já que acabou se aceitando que a atuação de atores mirins fosse interpretada como atividade artística", explica Rafaela Melo, uma das autoras.
Por "aproximação e com uma interpretação ampliativa", o grupo de pesquisadores encontra pontos de conexão com a atividade artística. Porém, a norma não tem sido aplicada nos casos em que crianças exercem a atividade de influencer, o que demonstra a ausência de parâmetros legais específicos sobre a atividade.
"É importante reiterar que estamos vivendo essa lacuna, que não é nova, vem desde a análise do ator mirim, que dependia do alvará e era um cenário em que muitos atuavam de forma irregular", pontua Rafael Diz, também autor. "Nós percebemos uma lacuna legislativa muito grande em relação a quais são os deveres das plataformas que permitem que a superexposição aconteça. Supostamente, no Instagram ou em outros tipos de redes não poderia ter crianças abaixo de 13 anos", ressalta outra autora, Mariana Millani.
Mesmo o entendimento da atividade de influencer mirim como artística poderia ser insuficiente para a proteção de direitos. "Há questões peculiares relativas à condição do trabalho artístico infantil em redes sociais. Existem diversos problemas de desrespeito à privacidade, superexposição da imagem, além de violação do direito à honra", aponta-se no texto. "Finalmente, a necessidade de constante criação de conteúdo gera grandes dificuldades à concretização de outros direitos como lazer e educação. Tendo isso em mente, fica claro que há uma condição específica neste trabalho que não parece permitir o completo enquadramento na classificação de trabalho artístico."
Os autores ressaltam que a Resolução nº 245 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente trouxe, em abril, uma contribuição importante em relação à proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes nos ambientes digitais, "com princípios orientadores que devem ser observados pela família, empresas, poder público". No entanto, trata do ambiente digital e como ele deve respeitar direitos principalmente dos utilizadores, não abordando o trabalho artístico exercido por crianças nas redes sociais.
O papel de plataformas e empresas
"Existe uma razão pela qual o trabalho infantil é proibido e, mesmo quando se é permitido, existe um esforço para regular e minimizar os efeitos disso na criança", pontua Maria Rita Pilon, uma das autoras. "Na internet existem efeitos de superexposição maximizados."
O ambiente digital, de fato, oferece riscos maiores e evidentes, mas, no caso dos influencers mirins, há um problema que é comum a outras situações problemáticas: a ausência de regulamentação e possibilidade de responsabilização das plataformas de conteúdo.
Eloísa Machado define o cenário como um "deserto regulatório". Não existem, entre outros tantos pontos, parâmetros sobre a quantidade de horas que uma criança pode usufruir das redes sociais e se isso deve ser ou não permitido. "É um debate incipiente no Brasil e muito pela postura das plataformas serem avessas a qualquer tipo de regulação", pontua.
"Em relação a esse tópico das crianças influenciadoras, o trabalho dos estudantes mostra que não estamos lidando apenas com um álbum de família digital, mas sim com um mercado que movimenta milhões, estabelecendo parcerias com empresas e gerando questões sobre trabalho infantil e exposição nas redes sociais. É um ambiente onde as plataformas, os pais e as empresas têm responsabilidades evidentes", explica.
O próprio estudo aponta, em sua conclusão, ser necessário um aprofundamento do ponto de vista normativo, afirmando que "o cuidado com estes indivíduos e com o trabalho desempenhado nas plataformas digitais deve ser tutelado de forma específica e localizada, de forma a garantir direitos, a segurança, e o melhor interesse da criança, conforme previsto na legislação brasileira e os padrões internacionais de cuidado à condição da criança e do adolescente".
Após a conclusão do trabalho, o diagnóstico foi apresentado a membros da Comissão de Comunicação e Direito Digital do Senado Federal. O colegiado analisa o Projeto de Lei nº 2.628, de 2002, chamado de PL do ECA Digital.