Por Paula Ravanelli*
Doca Street morreu nesta sexta-feira, dia 18 de dezembro de 2020. Ele protagonizou um caso emblemático para os direitos das mulheres no Brasil. Assassino confesso de Ângela Diniz, Doca foi praticamente inocentado no seu primeiro julgamento, saiu pela porta da frente do Tribunal em Cabo Frio-RJ, ovacionado pela população (muitas mulheres, inclusive).
Somente alguns anos depois, em razão de uma forte mobilização do movimento feminista que fez diversos abaixo-assinados na época, é que esse primeiro julgamento foi anulado e um novo júri o condenou a 15 anos de prisão, a maior parte deles cumprido em liberdade, é verdade. De qualquer forma, foi uma vitória para o movimento de mulheres, que conseguiu reverter a tese da "legítima defesa da honra”, sustentada pelos advogados do réu. Desta vez, a opinião pública já não lhe foi tão favorável. A população se dividiu entre conservadores e progressistas.
A semana também ficou marcada por outro fato, o assédio sexual sofrido pela deputada estadual Isa Penna no meio de uma sessão da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). A parlamentar teve o seu corpo apalpado pelo também deputado Fernando Cury, em frente às câmeras, quando se dirigia ao presidente da casa.
A cena foi amplamente divulgada na imprensa. Uma vez mais, as opiniões se dividiram. Apesar da clareza das imagens, em que a deputada repudia o toque do deputado, não uma, mas duas vezes, alguns ainda tentam justificar: foi um abraço, foi um ato de carinho. Assim como a morte de Ângela Diniz foi por amor.
O que se viu esta semana nas redes sociais, nos grupos de WhatsApp e equivalentes, foi para mim estarrecedor. Em vez de julgarem a conduta do agressor, novamente se coloca em julgamento a conduta da vítima. Passaram-se décadas entre o assassinato de Ângela Diniz e o assédio a Isa Penna. E eu me pergunto: será que avançamos tão pouco?
Quantas Ângelas precisarão morrer? Quantas Isas precisarão implorar por um julgamento justo do seu agressor para que tenham uma mínima reparação? Infelizmente, essa luta contra a violência e por justiça para as mulheres deve ser diária e ela envolve todas e todos nós, em todas as trincheiras possíveis, porque ela é - de fato - contra uma violência estrutural.
O que esses episódios nos ensinam é que a reivindicação por Justiça não pode ser dirigida exclusivamente ao Judiciário ou às instituições políticas, porque a violação de direitos decorre de uma cultura hegemônica machista, racista, lgbtfóbica etc, que estrutura a nossa sociedade e, por consequência, todas as nossas relações sociais.
Um segundo julgamento de Doca Street só foi possível por causa da mobilização social feita pelas feministas e a punição de Fernando Cury também dependerá disso. Contudo, sabemos, essa mobilização custa muito caro às mulheres vitimadas, que têm sua vida devassada e sua conduta julgada por todos.
Toda a solidariedade à Isa Penna, a Dani Calabresa e as todas as mulheres anônimas que se colocam sob linchamento moral todas as vezes que têm a coragem de denunciar o seu agressor. É bom que saibam que o movimento feminista resiste em cada uma de nós que se indigna, e que estamos atentas e solidárias para que não haja retrocessos aos direitos das mulheres, mesmo nesses tempos tão difíceis. Ângela Diniz vive em cada uma de nós!
*Paula Ravanelli é procuradora municipal, foi candidata à prefeita de Cubatão (SP).