O esquecimento do Estado de Direito no sistema prisional brasileiro

Foto: Luiz Silveira/ Agência CNJ
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Coordenador da Pastoral Carcerária de São Paulo diz que sistema prisional brasileiro desrespeita os direitos fundamentais e “serve apenas para massacrar o ser humano”

Por Beatriz Caroline Trevisan

Deyvid Livrini, de 36 anos, resolveu largar o cargo que ocupava em um banco privado para se dedicar a trabalhos sociais. Com criação dentro da igreja católica, buscou na instituição um jeito de ajudar o próximo. Mas nunca imaginava que acabaria trabalhando como coordenador estadual da Pastoral Carcerária – organização que reivindica pelos direitos dos encarcerados – da cidade de São Paulo.

Não sabia o que estava por vir. Em suas visitas aos presídios, lamenta encontrar os presidiários com roupas sujas e rasgadas, fora a comida precária, a falta de atendimento médico e jurídico e as celas superlotadas.

Já vi cenas de pessoas machucadas com curativos muito mal feitos, nunca vou esquecer do preso com ossos expostos”, relembra Livrini. “Em 2015 e 2016, nós denunciamos em média 400 casos de tortura e maus tratos para o Ministério Público e o Poder Judiciário. Nenhum deles foram apurados, nem respondidos”.

Livrini se indigna com as condições em que encontra os presos quando visita os presídios. Não vê os R$ 2.400 que são gastos por mês, em média, com presos e presas no Brasil, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Já no Estado de São Paulo, o valor cai para R$1.450. “Nos perguntamos: onde está esse dinheiro? Não seria melhor investir mil reais em uma faculdade para o preso? ”, reflete o coordenador.

Como uma testemunha presencial de como funciona dentro das prisões no Brasil, Deyvid expõe que, ao contrário do que é muitas vezes dito no senso comum, elas não são lugares confortáveis para os presos. “Nós escutamos expressões como ‘hotel de luxo’”, diz o coordenador. Depois que começou a trabalhar com a Pastoral Carcerária, percebeu que a sociedade “quase em sua totalidade tem uma visão muito distorcida do sistema prisional brasileiro”.

Deyvid não é o único que enxerga como tortura as condições em que os presos são submetidos nos presídios. “A comida pode vir com caco de vidro dentro, o preso poderá adquirir doenças, poderão ter ratos comendo o seu dedo enquanto dorme”, exemplifica Eleonora Nacif, advogada criminalista e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

Informações do Portal da Saúde apontam que pessoas privadas de suas liberdades têm 28 vezes mais chances de contrair tuberculose do que a população em geral. Os dados evidenciam que a realidade das prisões brasileiras que estão superlotadas vai contra os direitos fundamentais pressupostos no Artigo 5 da Constituição Federal. “Passar um minuto na prisão já é uma verdadeira tortura. Quem fala da prisão, a banalizando, é porque não a conhece”, enfatiza Nacif.

Rafael Braga, único preso nos protestos de junho de 2013 – por suspeita de portar material explosivo ao carregar duas garrafas lacradas de produto de limpeza – é um dos inúmeros casos de presos que estão sujeitos a contrair tuberculose. Braga conseguiu direito à prisão domiciliar depois de ter contraído a doença no Sanatório Penal, no Rio de Janeiro.

Nacif declara que o encarceramento em massa é resultado do estado de exceção em que o sistema penal brasileiro tem atuado, o qual tem em suas raízes o desrespeito ao Estado de Direito. “Se fosse democrático, iríamos nos deparar com um sistema absolutamente heterogêneo”.

Mas ele é homogêneo. São pessoas que, em sua maioria, são jovens, negras e com baixa condição financeira. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de dezembro de 2014, 56% dos encarcerados são jovens, entre 18 e 29 anos, sendo que 62% do total são negros. O que, para Deyvid, evidencia a seletividade dos processos criminais brasileiros. “É muito claro quem está preso no Brasil. É o jovem, pobre e negro da periferia”, enfatiza.

É possível afirmar que a maior parte dos que estão dentro das grades são aqueles que, historicamente, estiveram às margens da sociedade. A abolição em 1888 da escravidão que durou quase 400 anos no Brasil não foi seguida de políticas públicas de reinserção dos ex-escravos no mercado de trabalho e na sociedade, fator que também criou a situação atual da população negra no país.

O direito penal acaba tendo uma função de controle social”, expressa Nacif. “Para aquela parcela da sociedade que tem uma visão racista e discriminatória socioeconômica, ele está sendo utilizado para segregar quem não é interessante economicamente”, continua a advogada de forma veemente. Reforça que o encarceramento em massa não condiz com “àqueles que tem respeito à nossa Carta da República e que não consideram os direitos humanos um privilégio, mas sim direito de todos”.

Pedro Serrano, advogado e professor da PUC de São Paulo reafirma o posicionamento da advogada ao dizer que “a democracia virou praticamente uma roupa, uma maquiagem formal, e não uma realidade concreta, porque os direitos humanos não conseguem se efetivar”.

Como cerca de 40% das prisões no Brasil são preventivas, segundo Infopen de 2014, muitos dos que estão sendo privados de suas liberdades podem até ser julgados como inocentes no final. Deyvid cita casos em que os acusados chegam a ficar um ano preso para no julgamento serem declarados inocentes. “Quem vai devolver esse um ano (para o cidadão)? ”. Para Eleonora, o problema da prisão preventiva é que ela se tornou a regra e não a exceção. “Mal aplicada”, como acontece hoje, “é um risco à democracia”.

Deyvid, com seus 12 anos de experiência trabalhando com o sistema penal, entende que o judiciário, na incerteza, opta por prender possíveis inocentes, quando deveria manter o acusado em liberdade. “O sistema prisional é apenas um depósito de gente que serve para massacrar o ser humano”, declara.

Desses presos, apenas 10% são julgados por homicídios, sendo que a maioria dos crimes soma casos de furto (13%), tráfico de drogas (28%) e assalto (25%). Ou seja, pessoas que estão presas sem ter cometido violência contra a vida. “Nós nos deparamos com crimes sem violência com milhares de pessoas encarceradas perdendo suas existências”, afirma Eleonora.

Serrano acredita que haja no Brasil um “falso punitivismo, pois ele não se direciona aos crimes violentos”. Diz que há uma razão social para o número baixo de condenados por homicídio. “A vítima do crime de homicídio pertence ao mesmo segmento social daquele que comete o pequeno tráfico. Ou seja, como a grande vítima da violência é a pobreza, isso não é objetivo de apuração. O que interessa é ou a violência que atinge a elite, que é o roubo ou o furto, ou o pequeno tráfico por conta da ‘guerra às drogas’”.

Nacif continua dizendo que o sistema prisional brasileiro “é estado de exceção quando vemos milhares de pessoas presas por uma questão de política criminal (crime de tráfico) e não por uma questão de racionalidade e coerência”. Penas que, para a advogada, são muito influenciadas pela opinião pública, em razão da descontrolada exposição dos acusados na imprensa.

Eleonora nota que juízes que conduzem processos de grande repercussão midiática e não são efetivamente “corajosos e garantistas” (que garante os direitos fundamentais) são “engolidos pela opinião pública”, mesmo que isso signifique agir contra o Estado de Direito. Defende que a imprensa deve ser regulamentada. “Devemos veicular o crime, mas não o suposto criminoso, porque o inquérito judicial pode ser arquivado e a vida daquela pessoa já terá sido destruída”.

Ressocialização é outro ponto esquecido pelo sistema prisional brasileiro, que “não se preocupa em recuperar ninguém”, segundo Livrini. Isso só piora a criminalidade. “É um tiro no pé”, opina Nacif, pois acredita que o encarceramento em massa resulta, na maior parte dos casos, em consequências negativas para os presos, o que acaba em reincidência criminal.

Vários egressos vêm aqui falando ‘me ajuda porque eu não tenho para onde ir, não tenho emprego, minha família me abandonou’”, compartilha Deyvid. Para o coordenador, o pequeno número de egressos que consegue se reinserir na sociedade o faz por mérito próprio, e não por auxilio do Estado.

Há em média 622 mil pessoas encarceradas nos presídios do Brasil, o que o torna o 4° país com a maior população carcerária do mundo. Dessas, 250 mil ainda não foram não julgadas. “Estamos vivendo no Brasil um momento de esvaziamento dos direitos fundamentais, ou seja, esvaziamento da democracia”, opina Serrano para explicar que negação dos direitos dos encarcerados já se tornou algo rotineiro.

Presos e presas são submetidos a condições desumanas que contradizem o Estado de Direito de um regime democrático. Eleonora deixa claro que “a pessoa presa, independente de culpa, também é passível de ter os seus direitos humanos respeitados”.

Para Serrano, o que acontece hoje no sistema prisional, que prende em massa negros e pobres, os submete em condições desumanas, além de não garantir a ressocialização, não são meras disfunções, mas sim uma “patologia dentro da democracia” que demonstra características de um Estado de Exceção. Deyvid conclui que “é um reflexo do fracasso social” e encerra com a indagação: “como sair desse abismo em que nós nos afundamos? ”.

Soluções

O IBCCRIM, a Pastoral Carcerária, a Associação de Juízes para a Democracia e o Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação (CEDD/UnB) elaboraram dezesseis propostas legislativas contra o encarceramento em massa. As medidas foram apresentadas no dia 5 de abril ao Rodrigo Pacheco (PMDB-MG), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. Agora, elas estão sendo debatidas em eventos em todo o país, além de as organizações estarem planejando esforços para a tramitação oficial das propostas.

Entre as dezesseis medidas, já produzidas no formato de projeto de lei, estão sugestões de mudanças no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal. Algumas das sugestões são: alteração no crime de furto e roubo, diferenciação de condutas relacionadas a uso e tráfico de drogas, criação de juízes de garantias e garantir intimidade e proteção contra exposição midiática.

Foto: Agência CNJ