Escrito en
DIREITOS
el
No último domingo, Game Of Thrones exibiu uma cena de estupro que não fazia parte da história da qual a série é adaptação. Entre opiniões divididas e fãs revoltadas declarando abandono da programação, psicóloga alerta para a naturalização da violência sexual e suas consequências
Por Jarid Arraes
No último domingo (17), Game Of Thrones exibiu uma cena de estupro que não fazia parte da história da qual a série é adaptação. No entanto, o debate que a atração da HBO acabou gerando não é nenhuma novidade; não é a primeira vez que um estupro é criado pelos diretores e roteiristas da série. Fãs em todo o mundo mostraram revolta com a cena; na internet, há diversas publicações com declarações de abandono da programação. Mas, apesar de muitas pessoas questionarem a inclusão dessas cenas, há teorias de que esse tipo de abuso rende mais audiência e torna a violência mais realista.
O fato é que parece existir uma predileção dos responsáveis pela série, ou mesmo por outros filmes e programas televisivos, em explorar o estupro contra mulheres como algo atrativo. A psicóloga Aline Couto, que estuda Feminismo e Análise do Comportamento em mestrado da UFPR, explica as raízes dessas questões e as suas consequências preocupantes.
Revista Fórum - Por que cenas de estupro trazem mais audiência para o entretenimento? Há alguma explicação psicológica para isso?
Aline Couto - O debate sobre violência é uma constante dentro da psicologia e existem diversos fatores que levam as pessoas a gostarem de ver cenas violentas, que vão variar bastante entre os indivíduos da sociedade. Mas é patente que a violência é um tópico que atrai. Agir de forma violenta traz consequências frequentemente agradáveis ou de alívio para quem agride – afasta algo ruim rapidamente, ou faz com que alguém faça mais rápido o que queremos, evitando que a pessoa resista. Muito provavelmente, a espécie humana evoluiu de modo que violência seja inclusive algo bom, de forma “natural” para quem é violento – basta lembrar que é fácil ficar mais aliviado fisicamente descontando a raiva gritando no trânsito, xingando e quebrando coisas.
No caso específico da violência sexual, acredito que entram dois elementos que chamam mais ainda a atenção: o sexo em si, os estímulos relacionados a ele, a agressão e o que eu citei acima. Sexo é algo largamente discutido e importante para as pessoas e somos naturalmente e socialmente estimulados a ver, praticar, consumir tudo o que tem relação com ele. Juntando as duas coisas, temos que obrigar alguém a se submeter à relação sexual ou ver isso sendo feito é frequentemente atrativo para a maior parcela da população espectadora. E, numa cultura onde mesmo as relações entre sexo e violência têm frequentemente os seus limites “borrados”, onde as pessoas são muitas vezes apresentadas a uma cena como essa como uma cena de sexo “comum”, é fácil entender por que não é repulsivo ou chocante para a maioria.
[caption id="attachment_65904" align="alignleft" width="255"] Aline Couto (Imagem: Arquivo Pessoal)[/caption]
Fórum - O fato de o estupro ser a primeira opção em violência contra a mulher, quando a intenção é exibir uma mulher sendo violentada, tem origens no machismo e misoginia da sociedade?
Couto - A violência sexual me parece um dos exemplos mais extremos de objetificação e, por isso, não é surpreendente perceber que ocorre mais com mulheres, já que somos nós as mais frequentemente objetificadas, vistas pela sociedade como não detentoras de direitos ou vontades a considerar. O estupro é uma violência muito intensa de uma parte contra a outra, que pouco pode fazer para revidar, por diversos motivos – por falta de força física, por falta de entendimento do que está acontecendo (principalmente no caso de crianças e mulheres muito jovens), ou mesmo pela forma com que a sociedade lida com a mulher estuprada, pondo em dúvida tudo o que ela diz, questionando se “na verdade ela não gostou” e por fim desestimulando que ela denuncie e faça alguma coisa contra o que sofreu. A misoginia cria as oportunidades para que o estupro ocorra e mantém as condições para que ele continue sendo praticado contra as mulheres e para que ninguém se impressione com isso.
Fórum - O fato de um homem se interessar por cenas em que mulheres são estupradas é um fator de preocupação? Mostra alguma naturalização da violência?
Couto - A relação entre estímulos que a sociedade dispõe como relacionados ao sexo e o comportamento sexual das pessoas de fato é bastante complexa e não há como dizer, determinantemente, que um homem vai estuprar porque gosta de ver cenas de estupro, assim como não determinaria que uma mulher vá gostar de se engajar em fantasias de estupro porque gosta de vê-las. Para fazer essa associação, de novo, entram fatores individuais em jogo, como, por exemplo, a quantidade de vezes em que uma pessoa é exposta a essas cenas e como elas são tratadas pelas pessoas do seu ambiente, pessoas próximas com quem a pessoa discute sexo e sua vida sexual, ou aprende sobre sexo etc.
Mas não há como negar que o fato de a associação do sexo ser igual a violência e ser tão largamente difundida na indústria pornográfica e do entretenimento contribui para que ela se naturalize e não seja questionada. Não é por acaso que uma sociedade que ignora vontades, desejos e direitos da mulher na vida também a ignore quando o assunto é sexo. Não é por acaso que o homem como ativo e a mulher como submissa são considerados o padrão, o mainstream, e qualquer coisa que fuja disso seja considerada “alternativa” e relegada a grupos de pessoas com interesses específicos (como a pornografia feminista, que, ao que me parece, nada mais é do que o sexo como é se a mulher tiver um papel minimamente mais ativo do que a sociedade acha que ela deve ter). Passa a ideia de que o “natural” é que a mulher ou não demonstre gostar de sexo ficando totalmente passiva, ou demonstre não gostar, de forma ativa.
Além do mais, é preciso identificar que fatores levam alguém a preferir ver cenas de estupro a cenas de sexo quando escolhem ver pornografia ou outros conteúdos de entretenimento sexual. Quando alguém se sente mais confortável ou atraído vendo uma cena de violência, algo a respeito da forma como ela aprendeu essa associação pode ser problemático. Existem estudos, por exemplo, que demonstram que abusadores de crianças são os mais propensos a associar imagens de crianças a palavras com conteúdo sexual numa tarefa simples de associação de imagens e palavras; mas, logo após eles, vem as pessoas que consomem pornografia infantil, mas não chegaram a praticar nenhum abuso. E, entre todos, homens são mais propensos a fazê-lo do que mulheres. Ou seja, parece que há uma espécie de continuum aí, mesmo que não seja uma progressão causal documentada.
Fórum - Por que os homens não são retratados como vítimas de violência sexual no entretenimento tanto quanto as mulheres?
Couto - Agredir, por si só, é um comportamento tido como masculino – e não por acaso os estupradores em geral são homens e não mulheres, mesmo quando o estupro é contra outra pessoa do gênero masculino. Colocar o homem como vítima de violência é um golpe também na masculinidade deste, enquanto o homem como agressor e a mulher como vítima só sublinha e reforça o que a sociedade chama de “virilidade”. Acho que isso contribui muito, junto com a objetificação que mencionei, para que nós sejamos retratadas assim.
Fórum - Cenas de estupro podem influenciar, de alguma forma, o comportamento dos telespectadores e tornar maior a probabilidade de que a violência sexual contra mulheres seja mais aceita ou naturalizada?
Couto - É difícil dizer o quanto essa influência acontece, pois, de novo, ela varia de pessoa para pessoa. Algumas pessoas ficam horrorizadas, outras não e isso depende de fatores prévios e de como o ambiente imediato dela lida com tais cenas, para além da influência da própria cultura. Mas uma cultura que produz tantas cenas de exploração da violência contra a mulher, definitivamente, reflete e alimenta comportamentos correntes entre as pessoas na realidade.
Fórum - Para vítimas de estupro, o contato com cenas do tipo pode ocasionar alguma crise ou sofrimento?
Couto - Sim. O estupro é um tema tratado como tabu, então frequentemente as pessoas que passam por ele não falam sobre o assunto nem conseguem identificar exatamente o que as faz sofrer - e mesmo pequenas semelhanças da cena com o que a pessoa passou podem ocasionar reações emocionais fortes e lembranças dolorosas. Às vezes, sequer de forma consciente. É comum que pessoas que passam por um trauma esqueçam partes da cena traumática, mas, quando apresentadas a elementos da cena, reajam a ela mesmo sem saber por quê. E isso pode ser ainda mais doloroso, já que a pessoa mal sabe falar do que a está machucando.
Fórum - Na sua perspectiva, nossa cultura está preparada para compreender a diferença entre sexo consentido e estupro? Essa diferença é difícil de ser identificada?
Couto - Não era para ser uma diferença difícil de identificar. Mas, para muita gente, é. Homens são ensinados que as mulheres “dizem não quando querem dizer sim” e que basta insistir para se conseguir o que quer; as mulheres, por sua vez, não aprendem efetivamente a dizer não quando querem se negar, muito porque são frequentemente agredidas ou ignoradas quando o fazem e aí acabam considerando melhor ceder. Além da culpabilização da vítima – a mulher é posta em dúvida tantas vezes que pode até mesmo questionar se não foi de fato responsável pelo que aconteceu já que não disse “não” ou não se fez ouvir.
A cultura patriarcal amarra tudo isso muito bem e ensina atitudes quanto a isso a ambos os gêneros. Se fôssemos ensinadas desde cedo a dizer “não” quando queremos fazer isso e ensinássemos os homens a escutar esse “não”, seria bem mais fácil. Enquanto isso não acontecer de forma sistemática – ou seja, enquanto a cultura do estupro não mudar –, as pessoas vão continuar achando que consentimento é algo difícil de definir. Chega a ser levado com leveza e quase como piada quando uma mulher se recusa a fazer sexo, como naquela música “Blurred Lines” (música de Robin Thicke e do famosíssimo e elogiado Pharrell Williams).
Fórum - Como combater a naturalização da violência sexual contra as mulheres? É possível fazer esse enfrentamento ou crítica mesmo que o conteúdo exiba uma cena de estupro?
Couto - Combater isso requer uma série de ações que coloquem a mulher como detentora de direitos a serem respeitados, incluído o direito de dizer não. Muitas sequer sabem que o têm e por isso mostrar na mídia pop cenas que sublinhem isso, a meu ver, talvez seja preferível a continuar apenas explorando cenas de estupro, já que estas, como foi citado, podem ser dolorosas de ver para as vítimas. Não deve ser tão difícil assim destacar as qualidades das mulheres no entretenimento. Nós as temos e as mostramos diariamente, mesmo tendo que lutar contra tanta coisa. Quem sabe, pondo as mulheres como responsáveis por produzir entretenimento, já que a indústria ainda é dominada por homens, a coisa já não melhore (os roteiristas e diretores majoritariamente encarregados da série Game of Thrones, não por acaso, são homens; os encarregados pelo episódio em que Sansa Stark foi estuprada eram homens).
Fórum - O que você pode destacar sobre esse episódio específico de Game Of Thrones?
Couto - No caso da série em questão, o mais doloroso foi ver quantas pessoas acharam justificável a adaptação da história de Sansa Stark com o argumento de que “naquele tempo era assim mesmo”, “ela escolheu se casar com um psicopata, portanto mereceu” e coisas do tipo. Os responsáveis pela série optaram por deixar de mostrar a personagem de forma coerente com os livros – em que ela está numa jornada de empoderamento progressiva, aprendendo a se comportar de acordo com o que lhe é possível sem ser totalmente passiva e apenas chorar como lhe era esperado – para mostrar mais uma cena de objetificação de uma atriz jovem e bonita. E isso foi tomado como normal por boa parte dos espectadores, até como uma espécie de “vingança” contra a personagem, que por ser a mulher com as características “femininas” mais destacadas daquele universo – outras personagens femininas fortes mais queridas são as que se aproximam mais do estereótipo masculino.
Foto de capa: Divulgação