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Em 16 de março de 2014, morria a auxiliar de serviços gerais Cláudia da Silva Ferreira, arrastada por uma viatura da PM por 350 metros. Um ano depois, todos os policiais envolvidos no caso permanecem em liberdade. Aqueles que bradam contra a impunidade de corruptos nem se lembram dela ou daqueles que morrem, diariamente, em situações parecidas
Por Anna Beatriz Anjos
[caption id="attachment_61107" align="alignleft" width="300"] (José Carlos Angelo/ThinkOlga)[/caption]
Há um ano, morria a auxiliar de serviços gerais Cláudia da Silva Ferreira, aos 38 anos.
Era uma manhã de domingo quando ela decidiu sair de sua casa, no morro da Cegonha, no Rio de Janeiro, para ir à padaria comprar pão. No meio do caminho, foi atingida por dois tiros. A Polícia Militar alega que os projéteis foram disparados durante um tiroteio.
O que aconteceu depois é impossível de ser esquecido: Cláudia sendo arrastada pela viatura da PM. O rastro de sangue não deixa mentir. Foram 350 metros de sofrimento, até que o carro para e os policiais a colocam de volta no porta-malas.
Na última semana, o Ministério Público do Rio de Janeiro denunciou por fraude processual os seis PMs envolvidos na morte de Cláudia. O órgão concluiu que eles modificaram a cena do crime quando removeram o corpo a pretexto de socorrê-lo, mesmo sabendo que já não lhe restava vida. Dois deles foram denunciados, ainda, por homicídio doloso qualificado. Três dos agentes continuam trabalhando em outros batalhões; os outros estão judicialmente proibidos de exercer suas funções.
Um ano depois, entretanto, nenhum deles foi preso.
Ontem (15), milhares saíram às ruas para protestar, acima de tudo, contra a corrupção e a impunidade. Nas faixas e cartazes carregados pelos manifestantes, muitas menções à Operação Lava Jato e ao esquema de pagamento de propina da Petrobras. Nenhuma palavra, contudo, em relação à demora na punição dos policiais que assassinaram Cláudia. Indo além: silêncio absoluto quanto à condenação dos inúmeros PMs que diariamente aterrorizam e executam, nas periferias do Brasil, a população negra e pobre.
Cláudia não faz parte da preocupação dos "indignados" de domingo. Nem ela, nem nenhuma das questões que compõem seu universo de mulher marginalizada por sua raça, condição social e gênero. Tampouco sua história, brutalmente encerrada pelo horrendo episódio do dia 16 de março de 2014. Prova disso é o culto à militarização, observado nos protestos de ontem. Pessoas posando sorridentes para fotos ao lado de PMs constituíam uma cena normal. O que dizer, então, dos pedidos de intervenção militar?
O caso de Cláudia não é isolado, é um símbolo. O que aconteceu com ela ocorre todos os dias com mais cinco brasileiros, segundo o último anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O estudo indica que, em 2013, nossas polícias mataram pelo menos seis pessoas por dia. Do total de óbitos registrados, 81,8% foram cometidos por policiais em serviço.
Nada disso é novo. Há anos, movimentos sociais, pesquisadores, artistas e organizações de direitos humanos vêm chamando a atenção para esse quadro. Mas a mídia tradicional – a mesma que ajudou a organizar e insuflar os atos de ontem – despreza solenemente essa realidade. As grandes massas se enfurecem, de forma legítima, com a impunidade de políticos e servidores públicos corruptos, mas não movem uma palha sequer para contestar a demora da Justiça em condenar policiais assassinos – sobretudo, quando as vítimas são negras e pobres. É a revolta seletiva.
Cláudia, Amarildo, Douglas, os doze jovens mortos na chacina do Cabula, em Salvador, ou as onze pessoas assassinadas em Belém não lotam avenidas. É banal a ideia de que essas vidas valem menos.