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Desde que foi publicado, em 2011, o livro “Cinquenta Tons de Cinza” tem gerado bastante controvérsia: o que diferencia o BDSM das diversas formas de violência doméstica? É possível encarar tais práticas sob uma ótica feminista?
Por Jarid Arraes Desde que foi publicado, em 2011, o livro Cinquenta Tons de Cinza (título original Fifty Shades of Grey) tem gerado bastante controvérsia. A ficção da autora E. L. James retrata a história de Anastasia Steele, uma jovem moça que acaba se envolvendo com o empresário Christian Grey; mas há um detalhe importante nesse envolvimento: ele é dominador e praticante de BDSM – ou, como é mais conhecido popularmente, “sadomasoquismo”. Com quase 20 milhões de cópias vendidas ao redor do mundo, Cinquenta Tons de Cinza acabou tornando-se o responsável por introduzir o BDSM a muita gente. E agora, com o recente lançamento da adaptação cinematográfica, o best-seller voltou à tona com vários questionamentos importantes a respeito da segurança e da consensualidade dessa prática. Especialmente se tratando da obra de E. L. James, pode ser muito difícil fazer essa separação entre BDSM e abuso; afinal, a protagonista se vê em diversas situações em que não gostaria de estar, convencida a aceitar coisas que não queria fazer, por um dominador que é, várias vezes, ciumento, possessivo e invasor de sua liberdade. Muitos praticantes do BDSM concordam que o livro não é um bom exemplo das práticas, pontuando os erros cometidos por seus personagens. Neste contexto, Cinquenta Tons de Cinza traz uma excelente oportunidade para se debater: o que diferencia o BDSM das diversas formas de violência doméstica? Não praticantes tendem a não entender as diferenças, o que é alarmante, sobretudo para as pessoas que se interessam por conhecer e experimentar o BDSM. Afinal, não compreender as diferenças entre uma prática consensual e segura e uma situação de violência doméstica pode ser muito perigoso. O que É BDSM, afinal? [caption id="attachment_58809" align="alignleft" width="300"] Mariana Borges é submissa e masoquista no BDSM, além de feminista (Foto: Arquivo pessoal)[/caption] O BDSM é um conjunto de siglas englobando uma diversidade de práticas: Bondage e Disciplina (BD), Dominação e Submissão (DS) e Sadismo e Masoquismo (SM), além de diversos tipos de fetichismo. Um praticante varia de uma pessoa que faz de tudo a alguém que pratica somente uma das diversas técnicas do BDSM, não havendo qualquer restrição a respeito de quantas ou quais práticas devem ser feitas, ou mesmo sobre quem deve assumir quais papeis. Embora seja frequentemente relacionado a atividades sexuais, há quem goste de práticas específicas do BDSM sem o envolvimento de sexo; por exemplo, há masoquistas que gostam somente de sentir dor, sem que sejam diretamente estimulados sexualmente no processo. Do mesmo modo, há pessoas que gostam somente de ser amarradas, ou que gostam da dinâmica de Dominação e Submissão, mas detestam qualquer tipo de dor. Para muitos, aliás, a graça do BDSM está nas dinâmicas de poder. A entrega do controle sobre o próprio corpo do submisso para o dominador pode ser bastante excitante para ambos. Normalmente, o submisso (ou masoquista, escravo, bondagista, etc) negocia com o dominador (ou sadista, Dom/Domme, dono etc) para pré-estabelecer tudo aquilo que poderá acontecer durante a sessão. As práticas BDSM com um parceiro podem durar uma única noite, ou podem abranger um relacionamento inteiro por diversos anos – às vezes, um relacionamento DS leva o dominador a controlar até mesmo a comida ou as roupas do submisso. Tanto homens quanto mulheres podem ser submissos ou dominadores e as dinâmicas de relacionamento podem ser hetero, bi ou homo, em um relacionamento aberto ou fechado. Além disso, uma pessoa que é submissa em um relacionamento pode ser dominadora em outro, ou mesmo trocar de papeis com o parceiro, como é o caso de alguns Switchers. Com tudo isso, o respeito mútuo é uma das características mais importantes do BDSM. Todos os envolvidos precisam se ouvir e estar completamente cientes dos limites um do outro. Para o dominador, especialmente, recai a responsabilidade pelo bem estar do submisso, que poderá estar imobilizado e vendado sob situações de risco. A confiança total é essencial para que uma sessão BDSM dê certo, pois as práticas requerem muito mais responsabilidade do que outros tipos de relações. BDSM ou violência doméstica? Muitas pessoas olham superficialmente para o BDSM e enxergam somente as práticas físicas, frequentemente comparadas à violência doméstica. Porém, por trás de cada palmada, ou de cada ponta do chicote, há muito mais atividades envolvidas. É consenso entre muitos dos praticantes que o BDSM se sustenta em três pilares: ele deve ser sempre seguro, são e consensual. Isso significa que todas as práticas precisam ser pensadas e planejadas com antecedência para que sejam seguras quanto à integridade física dos participantes, quanto à saúde mental e psicológica, e precisam ser acordadas de antemão com o consentimento dos envolvidos. “A diferença entre uma relação BDSM, baseada nos conceitos de sanidade, segurança e consensualidade, e a violência doméstica é muito clara. Em um relacionamento abusivo, a pessoa que apanha não gosta e nem consente o ato. Ela é, na maioria das vezes, obrigada a aceitar por falta de opção ou por dependência. Ela é agredida. Uma pessoa masoquista sente prazer na dor, conhece seus limites e faz com que eles sejam respeitados através de negociação, palavra de segurança ou qualquer outro mecanismo”, diz Mariana Borges, submissa e masoquista no BDSM, além de feminista. Por conta desses fatores, as relações BDSM provocam, no geral, menos casos de abuso do que o sexo baunilha – como são chamadas as relações que não são BDSM. Acontece que, ao contrário do sexo corriqueiro, em que os parceiros nem sempre sabem do que o outro gosta e muitas vezes recebem surpresas desagradáveis durante a relação, o BDSM é antecedido por muita conversa e acertos, muitas vezes acompanhados até mesmo por contratos informais. Cada participante precisa expor o que gosta e o que não gosta, o que pode e o que não pode, e estabelecer seus limites antes mesmo da coisa acontecer. [caption id="attachment_58810" align="alignright" width="300"] Divina, como é conhecida na cena BDSM, é dominadora e sadista feminista (Foto: Arquivo pessoal)[/caption] É importante fazer essa diferenciação entre as práticas consensuais do BDSM e os diversos tipos de violência física e sexual, pois se praticado corretamente, no BDSM, o submisso ou submissa mantém sua autonomia. “Para ser submissa e masoquista, é preciso ter mais controle e consciência do seu corpo, dos seus limites e das suas vontades do que a maioria das mulheres fora do meio têm. Para dar - ou ‘emprestar’ - o poder sobre seu corpo a alguém, você precisa antes de qualquer coisa possuir esse poder. E em uma sociedade que reprime tanto a sexualidade feminina, o ato de conhecer e ir atrás do que lhe dá prazer é uma forma muito legítima de empoderamento”, explica Borges. Apesar de ser feita essa diferenciação, a sub feminista Letícia Oliveira conta que se sente mal com essa confusão. “Eu acho que a diferença é perfeitamente clara, já que a chave do BDSM é ser consensual, são e seguro. Mas confesso que já houve vezes em que eu me sentia muito mal por pensar que algumas práticas de submissão poderiam se parecer de algum modo com a violência doméstica”, diz. Vale ressaltar que uma vítima de violência doméstica não escolhe como, quando, ou mesmo se deseja ser agredida, e tem medo a violência sofrida. Já uma pessoa submissa define seus limites – desde a intensidade da brincadeira até os tipos de práticas envolvidas – e pode parar sempre que quiser, em qualquer momento, sem precisar de justificativa. Uma pessoa submissa só participa porque quer e sente prazer e gratificação em estar ali, algo que não pode ser dito sobre qualquer vítima de violência. Jamais deve haver qualquer pressão ou coação por parte do dominador em um relacionamento BDSM saudável. Para Divina*, dominadora e sadista feminista, o “BDSM é uma espécie de encenação mutuamente aceita, uma catarse de prazer profundo, não é o apagamento do sujeito por coação e imposição”. A palavra de segurança, aliás, é uma ferramenta essencial do BDSM. A ideia de que o simples dizer de uma palavra, ou mesmo um gesto, deve ser suficiente para cessar toda e qualquer atividade que estiver ocorrendo no momento, poderia ser até mesmo revolucionária para prevenir casos de abuso se os agressores respeitassem seus parceiros. “Tenho contato com mulheres submissas que admitem não se relacionar com homens baunilha porque por mais que a sessão BDSM seja pesada, ao falar a safeword (palavra de segurança) o ato parará. Ela será cuidada do início ao final (aftercare). No sexo baunilha dificilmente se diz os termos antes de começar, isso é considerado um empata-foda”, diz Divina. De fato, enquanto um dominador ou dominadora responsável deverá parar tudo o que está fazendo imediatamente ao pedido do submisso, não se sabe de nenhum caso de estupro ou violência doméstica em relacionamentos baunilha onde o agressor parou o que estava fazendo simplesmente porque a vítima pediu – são situações completamente diferentes. O fato é que não existe consentimento em relações de abuso ou violência. Existem, sim, relações de medo ou de dependência emocional ou financeira, mas não há quem simplesmente escolha permanecer com seu abusador sofrendo violências gratuitamente. E no BDSM, consentir é muito mais do que dizer “sim” ou “deixar” que algo aconteça – a pessoa submissa precisa estar plenamente esclarecida a respeito das práticas as quais pretende se submeter, conhecendo seus riscos e sua intensidade. Também é preciso haver muita confiança entre todas as partes, pois um simples descuido do dominador pode custar vidas. Há diversos casos onde o dominador pratica alguma técnica primeiro em si mesmo por vários meses antes de fazer em outra pessoa – um cuidado especial que jamais seria tomado por um agressor. Enquanto uma pessoa dominadora zela por seu parceiro, tomando cuidado para não machucá-lo – muitas vezes contrariando a própria vontade do submisso de ir além, parando quando sabem que é arriscado continuar – abusadores não se importam com o bem estar da vítima. “Uma pessoa dominadora no BDSM não espanca o parceiro sem critérios porque o odeia ou para se impor, ela conhece os efeitos de cada instrumento usado e controla a forma e a intensidade de cada gesto para que não haja lesões físicas ou psicológicas durante as práticas. É algo que envolve muita responsabilidade e respeito de ambos os lados”, diz Borges. “Como masoquista, eu já apanhei centenas de vezes, mas posso dizer com toda certeza que nunca fui agredida. Conhecer meus limites é fundamental, inclusive para identificar muito mais facilmente alguma possível situação de abuso. Se qualquer pessoa, inclusive meu Dono e parceiro, um dia tocar meu corpo de forma não consentida ou fora de contexto, essa situação será tratada como violência, e não como BDSM”. Além de tudo, embora algumas práticas BDSM pareçam muito assustadoras, absolutamente todas as atividades precisam ser devidamente controladas e devem ser feitas somente em segurança. Por exemplo, “brincadeiras” que envolvem queimar, cortar ou chicotear o parceiro até sair sangue podem parecer incrivelmente cruéis e perigosas. Porém, essas práticas só devem acontecer nas mãos de um dominador responsável e competente, que entende perfeitamente bem não apenas como manusear os instrumentos necessários, mas também os limites do corpo humano e, ainda mais importante, os limites específicos do parceiro – que podem ser não somente físicos, mas também mentais. Se uma pessoa não se sente confortável com uma certa situação, se tem algum trauma, ou mesmo se muda de ideia no meio da relação, o dominador deve sempre respeitar a vontade do submisso e prezar por seu bem estar acima de todas as coisas. O ponto disso tudo é que, assim como qualquer outro tipo de relacionamento, há, obviamente, pessoas irresponsáveis e mal intencionadas no BDSM. Porém, quando praticado da maneira certa, o BDSM não se compara em nada a qualquer tipo de violência. Há uma ênfase muito grande na consensualidade e no bem estar dos participantes, seja dentro ou fora da sessão, de modo que não poderia ser mais evidente que BDSM e abuso não andam lado a lado. “O BDSM é necessariamente consensual, se lê e presta atenção nos sinais do corpo do outro a todo instante. As violências domésticas e sexuais, contra mulheres ou crianças, partem do princípio da invasão causada por alguém mais forte moralmente, hierarquicamente e, não raro, fisicamente”, pontifica Divina. BDSM e feminismo Para muitas ativistas pelos direitos das mulheres, é impossível conciliar o feminismo com qualquer prática do BDSM. Afinal, como seria possível lutar pela igualdade de gênero, mas ao mesmo tempo ser a favor de uma prática que dá permissividade ao abuso sexual e à violência doméstica? Para essas ativistas, nem mesmo o argumento do consentimento seria suficiente para defender o BDSM, pois as mulheres que se “submetem” à violência teriam sido condicionadas pelo meio social para aceitarem algo que não deveriam. Frequentemente, as mulheres que são dominadoras e sadistas também são esquecidas desses discursos. Divina é clara quando diz: “Para algumas mulheres, determinados gestos, práticas sexuais ou termos, são intrinsecamente desumanizantes. Para algumas mulheres, o BDSM é a romantização da violência contra a mulher. Meu conselho é simples: Se é amedrontador, se aquilo te desestabiliza, magoa, envergonha, fere moralmente, não faça. Não é porque você não consegue ressignificar dinâmicas de poder, que outros não podem o fazer”. [caption id="attachment_58811" align="alignleft" width="300"] “Para ser submissa e masoquista, é preciso ter mais controle e consciência do seu corpo, dos seus limites e das suas vontades do que a maioria das mulheres fora do meio têm. Para dar - ou ‘emprestar’ - o poder sobre seu corpo a alguém, você precisa antes de qualquer coisa possuir esse poder. E em uma sociedade que reprime tanto a sexualidade feminina, o ato de conhecer e ir atrás do que lhe dá prazer é uma forma muito legítima de empoderamento”, diz Borges (Foto: Captain Orange)[/caption] Letícia Oliveira relata que tem a segurança de ter tido sempre um papel totalmente ativo e autônomo em sua prática como submissa. “Eu acho fundamental ter o direito (e ser respeitada por isso) de exercer a minha sexualidade da maneira como eu desejar e como eu for capaz de lidar com ela naquele momento”. Mas frisa: “Por outro lado, obviamente o meu entendimento de sexualidade e de papeis é uma construção social. E essa construção social só pode mudar via feminismo, que é capaz de ajudar as mulheres a se sentirem empoderadas e donas da própria vida e do próprio desejo. Então eu acho que, desde que a mulher seja protagonista da sua prática sexual, não importa o papel, seja de sub, domme, masoquista ou sadista”, completa. Mariana Borges conta sua experiência com feministas contrárias ao BDSM: “Não é nada raro encontrar feministas que querem demonizar o desejo alheio e praticar o que eu chamo de ‘baunilhexplicanismo’ - que é quando uma pessoa não praticante de BDSM acha que sabe tudo sobre o assunto e por isso deve convencer submissas e masoquistas que o seu desejo é apenas reprodução de opressão e machismo. Já li inclusive textos chamando feministas no BDSM de ‘desertoras do movimento’ e outras coisas bem pesadas”. Segundo Divina, é primoroso que o feminismo bata na tecla que as mulheres precisem aprender a dizer “não”. “’Não, é não’. Perfeito. Mas o feminismo também precisa repensar que as mulheres precisam se sentir confortáveis em dizer ‘Sim’ sem se sentirem pecadoras. As mulheres não precisam de mais culpa, mais vergonha”, afirma. “Defendo a agência e autonomia de todas as mulheres, cada mulher deve se sentir confortável para dizer o não, mas também responder afirmativamente ao que lhe dá tesão, mesmo que aos olhos dos outros pareça uma moral duvidosa”, explica. A dominadora segue a criticar a visão do feminismo autoritário quanto ao BDSM: “Algumas correntes do feminismo creem em um patriarcado no qual as mulheres não possuem o poder de escolha. Considero essa perspectiva deprimente e fatalista, contraproducente até para quem professa tal discurso, haja vista o pressuposto no qual mulheres não podem ser autônomas apesar do esforço hercúleo. Relacionamentos abusivos fazem mulheres duvidarem de sua capacidade de discernimento (gaslighting); o feminismo autoritário também”. Ainda que seja duramente criticado por algumas correntes do feminismo, o BDSM tem o potencial para ser feminista, ou pelo menos para empoderar as mulheres que escolhem praticá-lo. “O BDSM tem a ver com o feminismo se isso te faz despir dos parâmetros alheios, se isso te faz sentir liberta, se seus limites são respeitados, se a prática te faz sentir tesão, orgulho, energia, força. Do contrário, ele não é para você e está tudo bem ser sexualmente tradicional. BDSM pode ser feminista na medida que respeita a palavra da mulher”, argumenta Divina. No final das contas, o que realmente importa é que as mulheres se sintam bem consigo mesmas; sejam elas praticantes ou não do BDSM, que elas sempre possam escolher e ter autonomia sobre a própria vida sexual. Divina deixa uma mensagem inspiradora para aquelas que se sentem coagidas a buscar aprovação: “Espero que as mulheres não se sintam mais constrangidas e coagidas por essa ou aquela prática em busca de legitimação, inclusive de movimentos sociais e demais lideranças. BDSM é exercício lúdico, apuração do querer”. *O nome da entrevistada foi trocado para preservar a sua identidade. “Divina” é como é conhecida na cena BDSM. (Foto de capa: Captain Orange)