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Inventaram termos e conceitos como sincretismo, mestiços, mulatos etc., embranqueceram as práticas, os rituais. O que não conseguiram adequar a seu bel prazer, transformaram em exótico. Dentro desse contexto, o exótico é consumível e o negro no Brasil continua sendo um produto na prateleira do mercado
Por Eliane Oliveira*, colunista da Fórum
Em algum momento da minha vida virtual escrevi um texto sobre apropriação cultural que até hoje vejo pipocando pela net quando tal assunto entra na pauta das discussões. Confesso que estou criando o hábito de não ler os comentários que seguem os textos (meus e de colegas). Me falta paciência para quem não consegue sair da zona de conforto e problematizar seus privilégios. Prefiro escrever, fazer outros questionamentos, nesse sentido, resolvi me lançar novamente na seara que é tratar de tal assunto.
Muito já se falou sobre o que é apropriação e porque nós negros estamos a todo momento bradando nossos direitos e a legitimidade das nossas heranças culturais. Mas sempre é bom reforçar que: 1- É uma questão de identidade; 2 – Não aceitamos mais ser violentados e invisibilizados.
Só lembrando que o conceito de “aculturação” já foi superado pela antropologia, ou seja, não venham me dizer que as culturas se misturam, se apropriam dos elementos de outros grupos a ponto de serem extintas. Ou seja, um índio não deixa de ser índio porque convive com o branco, o negro não deixa de ser negro porque se adequou ao padrão dominante.
Dessa forma, quando falo na apropriação indevida dos símbolos culturais de uma etnia, estou defendendo a preservação de elementos identitários.
Ao problematizar a apropriação dos elementos culturais do povo negro, me remeto à preservação de uma identidade que, historicamente, passou por um processo de embranquecimento e lembro que uma vez que esses elementos são descaracterizados, se deslegitima as práticas, os rituais e invisibiliza as lutas.
Podem argumentar que no mundo moderno, dominado pelo capital, tudo vira mercadoria e que nós negros queremos “reinventar” a roda. Ora, a tal identidade da pós modernidade, como quer o senhor Stuart Hall, serve para pensarmos muita coisa, inclusive o quanto a identidade do negro brasileiro foi sendo moldada a sua revelia.
Ou seja, criaram uma identidade social para este indivíduo sem considerar as suas particularidades e heranças culturais. Heranças essas, desde sempre, anuladas ou desconsideradas na sua legitimidade (o que fizeram da religiosidade dos povos negros que aqui chegaram? Das suas músicas e ritmos?).
Inventaram termos e conceitos como sincretismo, mestiços, mulatos etc., embranqueceram as práticas, os rituais. O que não conseguiram adequar a seu bel prazer, transformaram em exótico. Dentro desse contexto, o exótico é consumível e o negro no Brasil continua sendo um produto na prateleira do mercado.
Isso não aceitaremos em nenhuma situação, nossa identidade cultural é parte integrante da nossa identidade social e ambas já sofreram todas as tentativas de anulação. Se não podemos pensar a identidade de uma sociedade a partir de apenas um elemento cultural e nos remetemos a nossa mistura de povos para caracterizar o que é ser brasileiro, fico me perguntando que mania é essa de tentar anular um em detrimento de outro?!
Estarei errada? Se chamarmos uma pessoa de negra e essa se dizer parda, estará negando sua origem étnica, porém não poderá se dizer branca, simplesmente porque a sociedade não a lê como tal.
E isso é um problema? Para uns não, mas para muitos sim, há um grupo de pessoas que se sentem fora da zona de pertencimento, pois não se identificam com as discussões próprias dos grupos que, queiram ou não, existem no país. Não participam do movimento negro ou afro nem do movimento indígena, mas também não se identificam com a confortabilidade branca, pois a sociedade preconceituosa exclui os diferentes. Afinal, o que é ser pardo no Brasil? O pardo ou “mestiço” se tornou um indivíduo sem identidade definida.
Está difícil de assimilar o que estou dizendo? O negócio é fazer uso da alteridade. O discurso de se colocar no lugar do outro é tão comum que já virou quase um clichê, mas não, alteridade é um conceito interessante. Pois não basta arrotar teoria, é preciso exercitá-la.
Se não nos colocamos no lugar do outro, não damos abertura para aprender com o diferente. Por mais que o mundo globalizado aproxime os sujeitos, não somos todos iguais. Temos vivências distintas, dores singulares e valores particulares. As histórias de cada um é repleta de elementos simbólicos que terão valores muito distintos.
Então, se você não é negro, não tem relação com os elementos simbólicos e históricos da cultura desse povo entenda que, ao utilizar tais elementos, além de estar fortalecendo a indústria cultural, você não estará reforçando os traços próprios de uma cultura, pelo contrário, colabora para seu enfraquecimento.
Se você não consegue se colocar no lugar do outro, não permite o diálogo e acha que tudo é uma questão de opinião, então precisa urgentemente rever sua posição, seus privilégios e praticar intensamente a alteridade. E pare com esse discursinho sem embasamento de que o Brasil é um país mestiço, pois isso só demonstra sua falta de conhecimento da posição social dos sujeitos.
Será que a identidade está tão em crise a ponto de os não negros quererem se apoderar de elementos identitários de outros povos para se sentir participante de alguma categoria? Ou querem se apropriar para anular, invisibilizar e ou esconder um passado histórico de práticas vergonhosas?
Alguns grupos acostumados em ver suas tentativas de anulação da identidade do negro serem tão bem sucedidas (alisando os cabelos, clareando a pele, invisibilizados nos mais diferentes espaços, marginalizando os ritmos, demonizando os deuses, embranquecendo a religiosidade), que não conseguem engolir que nesse momento estes sujeitos ganharam voz para dizer: BASTA!
Somos um povo culturalmente miscigenado e dividido em raça, sócio-políticamente falando. Nessa divisão, os negros tem em sua herança cultural uma bandeira, são símbolos de resistência, de luta e não pretendem abrir mão deles, pois não é apenas ceder aos encantos da modernidade, é desistir de sua identidade, mantida a duras penas e muito sangue derramado. Podem continuar tentando nos silenciar, mas a consciência não se apaga, nunca.
Encerro com um trecho de Tornar-se Negro da Neusa Santos Souza: “Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Discurso que se faz mais significativo quanto mais fundamentado no conhecimento concreto da realidade.”
Sim, conhecemos nossa história, elaboramos nosso discurso, cabe a vocês não negros, ouvir, aceitar e respeitar.
Referências:
SANTOS, N. S. Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro em ascenção social. RJ, 1983, ed. Graal.
HALL, S. A identidade Cultural da Pós Modernidade. RJ, 2006, ed. DP&A.
(*) Eliane Oliveira é mestre em Ciências Sociais e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (NEIAB) pela Universidade Estadual de Maringá/PR (UEM), além de professora da sociologia da rede pública e particular e feminista negra.