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O voo que tomei para visitar minha família no feriado foi uma experiência dolorosa e aviltante. Eu tinha que dizer algo. Mas o quê?
Do Geledes
[caption id="attachment_26975" align="alignleft" width="300"] Britney Cooper relata sua experiência (Foto: Divulgação)[/caption]
Embarquei em um avião quarta-feira de manhã, em uma corrida desenfreada de Jersey até a Louisiana para passar o feriado de Quatro de Julho com minha família. Tenho plena consciência da miríade de contradições envolvidas no fato de uma feminista negra radical ser uma entusiasta desse feriado. O Quatro de Julho, para a minha família, representa menos uma narrativa estadunidense de liberdade e justiça para todos (um ideal nunca plenamente realizado) do que um momento em que nos reunimos para desfrutar da companhia uns dos outros, fazer um churrasco no calor do verão da Louisiana e, através da mais pura alegria e celebração, oferecer uma pequena mas significativa versão alternativa sobre como nos emancipamos.
Mas a natureza complexa destas viagens de volta para casa geralmente se revela quando a agente de segurança do aeroporto decide que é necessário passar os dedos pelo meu penteado afro, em busca de “armas” não-identificadas. Desta vez, surpreendentemente, isso não aconteceu, e deixei escapar um suspiro de alívio quando a passagem pela segurança transcorreu sem incidentes.
Na fila de embarque, bem à minha frente, estava uma bela e tradicional família nuclear. A mãe era alta e deslumbrante, e tinha dois lindos filhos com cerca de 10 e 7 anos. Por algum motivo, eles tornaram-se objeto de minha atenção enquanto eu embarcava. A mãe gentilmente admoestava o menino mais velho a ler o livro de férias, certificando-se de que seus exercícios estariam disponíveis a bordo.
Enquanto embarcávamos, reparei que esta mãe e eu sentaríamos na mesma fileira, eu na janela e ela no centro. Enquanto aguardávamos a decolagem, terminei de escrever uma mensagem de texto e pedi à aeromoça um extensor de cinto de segurança, o melhor amigo do passageiro gordo. Então, bem no momento em que ouvimos o aviso para desligar os telefones, olhei para o lado de relance e ela ainda estava digitando uma mensagem de texto. Pesquei algumas palavras ao final da mensagem que me fizeram olhar com mais atenção: “tô no avião, sentada do lado de uma preta fedida [nigger] e balofa e a perna dela tá encostando na minha. Que sorte que eu tenho.”
Parei de respirar por um momento.
Então, senti dor. Humilhação. Constrangimento. Raiva.
Ainda me lembro da primeira vez em que fui chamada pela palavra “N”. Foi por volta de 1988, eu estava na terceira série. Minha colega de classe, uma pobre menina branca chamada Vicki, decidiu terminar uma briga infantil gritando “Sua PRETA FEDIDA [dirty nigger]!” Eu, na época com sete ou oito anos de idade, fiquei perplexa. E permaneci em silêncio. Nunca ouvira aquela palavra usada daquela forma antes. Não sabia o que significava. E, ainda assim, senti sua força e sua conotação cáustica de forma visceral.
Naquela mesma noite, me aproximei de minha mãe na cozinha enquanto ela servia o jantar, e perguntei: “O que significa a palavra ‘nigger’?” Antes que ela pudesse responder com palavras, simplesmente registrei sofrimento em seu rosto. Olhando retrospectivamente, vejo aquela dor como a dor de um pai ou mãe que se depara com o alcance inevitável dos problemas de outras pessoas, contra os quais você não pode proteger o seu filho. Era também a dor de uma mãe negra deparando-se com a inevitabilidade do primeiro encontro de uma criança com o racismo. Depois de perguntar por que eu queria saber, ela disse simplesmente: “Significa uma pessoa ignorante”.
Hoje, quando fui chamada pela palavra “N”, parte de mim sentiu-se como aquela menininha de novo. Senti o insulto de forma igualmente visceral, o pressentimento terrível de que havia algo de errado não com qualquer coisa que eu houvesse dito ou feito, mas algo de errado comigo, simplesmente. Imediatamente, senti-me extremamente vulnerável e insegura – olhei ao redor, sentindo-me marcada, pensando se os outros estariam achando meu corpo grande e minha pele escura tão desagradáveis quanto achava minha vizinha de fileira.
Sei que sou gorda. E fico especialmente apreensiva com isso em aviões, já que me preocupo em ocupar muito espaço. Na minha imaginação, sempre penso que as pessoas vão odiar ao me ver chegando, pois os americanos levam muito a sério o espaço pessoal. Não sou exceção a esta regra.
Ainda assim, eu estava completamente consciente, pelo menos em um nível intelectual, de que o problema era dela e não meu. Mas qual seria a minha reação? Embora ela mesma não fosse nenhum palito, era uma senhora branca, mãe, com filhos e um marido – todos os sinais de respeitabilidade da classe média americana. Além disso, ela escrevera aquelas palavras em uma mensagem de texto particular. Sou uma mulher gorda, negra, de pele escura. Se eu tivesse armado um escândalo e resolvido a questão como ela merecia, é bem provável que eu tivesse sido vista como uma ameaça terrorista. Especialmente na véspera do Quatro de Julho.
E este é o problema com feriados americanos: frequentemente eles mudam o foco e confundem a narrativa, de modo que vilões são vistos como benfeitores e vítimas são vistas como agressores. O Dia de Ação de Graças, em que o país comemora o genocídio de nativos agradecendo por gerações de riqueza construídas a partir do saque de suas terras, é um bom exemplo. O modo como os feriados americanos naturalizam as violências rotineiras que deram origem a esta república faz com que feriados como o Juneteenth, o dia em que comemoramos o verdadeiro fim de toda a escravidão nos EUA, sejam tão necessários.
O que, então, eu poderia dizer? Algo. Eu tinha que dizer algo. Mas o quê?
Comecei compartilhando as palavras dela em uma atualização de status no Facebook – em parte porque, recentemente, eu vira demasiados amigos, negros e brancos, prontamente defendendo Paula Deen, argumentando que seu uso da palavra “N” era o resultado compreensível de suas raízes sulistas, e seguramente um resquício de uma era passada.
No entanto, aparentemente esta jovem família, em que os pais pareciam ter trinta e poucos anos, era de um estado do norte. Então, depois de esperar um pouco e conter as lágrimas que brotaram logo que vi aquelas palavras, simplesmente chamei sua atenção e pedi-lhe para ler o status do Facebook em meu telefone.
Ela viu, emitiu uma espécie de grunhido de assentimento, e não disse nada. Então prossegui, em um tom de voz baixo: “Só quero que você saiba que suas palavras foram ofensivas. E espero que você não passe esse tipo de ignorância para os seus lindos filhos.” Ela respondeu secamente: “Eu não passo.”
Passamos o resto do voo para o sul juntas, ela sendo uma mãe zelosa para os filhos, eu rezando para que as sementes de ódio que ela está plantando não caiam em solo fértil.