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Por Leandro Seawright Alonso*
Estamos vivendo o tempo das histórias descoladas da grande História. As pessoas estão cada vez mais interessadas nas histórias dos outros e, por isso, celebra-se indubitavelmente uma “escrita da alteridade”. Por isso, as histórias de vida e as histórias testemunhais estão em diálogo constante com a memória, sobretudo com a “memória coletiva” que faz convergir temas comuns em nossa sociedade.
[caption id="attachment_37419" align="alignleft" width="300"] (Foto: Roberto Stuckert Filho/PR)[/caption]
Atualmente, os esforços da Comissão Nacional da Verdade, e de outras comissões da verdade, no que se refere à importante categoria de “justiça de transição” – mesmo que tardia no Brasil – faz-nos ressaltar, neste breve artigo, o importante direito ao ressentimento. Que dizer da mulher estuprada, da criança espancada, dos “desaparecimentos”, das mortes em nome do anticomunismo brasileiro? Sem recorrer aos importantes recursos da psicologia para tratar das questões da “alma”, entretanto, o ressentimento concitado, aqui, refere-se à coletividade mais do que à individualidade-do-ser. Para Hannah Arendt o perdão tem a sua força não apenas “moral”, mas também de reparação:
“As duas faculdades formam um par, pois a primeira delas, a de perdoar, serve para desfazer os atos do passado, cujos ‘pecados’ pendem como a espada de Dâmocles sobre cada nova geração; e a segunda, o obrigar-se através de promessas, serve para instaurar no futuro, que é por definição um oceano de incertezas, ilhas de segurança sem as quais nem mesmo a continuidade, sem falar na durabilidade de qualquer espécie, seria possível nas relações entre os homens” (ARENDT, 2011, p. 295).
Relaciono-o, sem pormenorizações e detalhamentos (por questões éticas que agora me envolvem), apenas introdutoriamente, ao período da ditadura civil-militar brasileira (1964 – 1985). Daí, destacamos limitadamente três importantes compreensões evidenciadas em narrativas de pessoas perpetradas durante o Regime Militar no Brasil:
1. Testemunho. Importantes autores relacionados à história oral têm se dedicado aos testemunhos. Um dos mais destacáveis é, indubitavelmente, o professor da Universidade de São Paulo, USP, José Carlos Sebe Bom Meihy. Evidentemente, Meihy faz a distinção entre história oral de vida e história oral testemunhal, mas admite que pode haver cruzamentos entre os gêneros quando existem traumas marcantes demonstrados por narrativas. Disseram Meihy e Suzana Lopes Salgado Ribeiro que a história oral testemunhal é “caracterizada por narrativas afeitas às vivências dramáticas e de consequências graves, a história oral testemunhal, mais do que documentar e permitir análises, dimensiona ações voltadas ao estabelecimento de políticas públicas” (MEIHY; RIBEIRO, 2011, p. 85). Considero, com grande parte da comunidade acadêmica, que nós estamos vivendo a “era dos testemunhos”, pois que, por um lado, os caminhos políticos brasileiros dos últimos tempos propiciam as histórias diversas e, por outro lado, as pessoas estão cada vez mais interessadas em testemunhos, em histórias de vida. A palavra testemunha advém curiosamente da expressão grega ???????? (mártir). Para existir um testemunho, portanto, deve haver consequentemente um narrador, um trauma como “machucado da memória” e ressentimento, bem como um mártir disposto a fazer morrer para poder viver. A sociedade em busca de “justiça de transição”, pode proporcionar momentos de “escutas privilegiadas” e estabelecimento de “bancos de histórias” que sirvam para preservar a memória da luta política.
2. Subjetividade. Uma importante questão suscitada por oralistas competentes – como os mencionados anteriormente – remete-nos às imprecisões da memória individual como produto da memória coletiva. Se a memória falhar, errar, camuflar, distorcer e percorrer caminhos diferentes da objetividade pontual pictoricamente pretendida, como fica a verdade? Primeiro é necessário reconhecer que o campo de discussão filosófica sobre a verdade possui retraços históricos particulares que não podem ser abordados com sutileza e leviandade nesse artigo, por exemplo. Segundo, a verdade está sempre em que fala e não cabe ao Estado “dar voz” às pessoas, mas “ouvidos” àqueles que foram perpetrados em um período ditatorial. Terceiro que a narrativa é suficiente como matéria de verdade e não concorre com documentos escritos, porque, os mesmos documentos regulares, possuem dados subjetivos de quem os produziu. Por isso, não cabe mais, somente, desconstruir uma mentira, mas compreender os porquês do sujeito que mente. Sabe-se que a mentira, entre outras coisas, é como o narrador gostaria que o mundo fosse. Ainda assim, no caso de políticas de reparação, existe certa objetividade que não pode ser descartada. Dessa forma, respeitada a subjetividade, deve-se empregar análises exegéticas sobre um suposto de verdade mais ou menos evidenciado pela coletividade das lembranças. Alocamos o ressentimento na subjetividade intrínseca ao ser humano inserido na coletividade de memórias machucadas, feridas e com direito de existir, de sentir, de sofrer.
3. Do conceito de vítima. Reduzir um ser humano que escolhe à condição de vítima – em sentido estritamente jurídico – é retirar dela a sua capacidade não apenas de escolha, mas também de correr riscos, de se aventurar, de se dar em prol de uma causa que transpõe as importantes categorias marxistas de “luta de classes”. Por importantes que sejam tais categorias para uma história social e econômica, não se pode perder de vista o sujeito, o narrador, o dado volitivo do ser humano. Somos favoráveis que a vitimologia seja empregada para políticas públicas de reparação, entretanto reconheço que um ativista, um artista, um cientista, um professor que desenvolve uma consciência política e vai à luta não se enquadra totalmente nos moldes convencionais da vitimologia jurídica. Grande parte dos perpetrados, e isso não justifica as ações de terror do Estado, sabia dos riscos que estava correndo no momento de sua prisão, de sua tortura, de seu exílio. Para uma “política pública honesta”, que não quer revanche, é mister considerar o direito de ressentimento alinhado à capacidade natural de tornar-se “senhor” ou “senhora” da sua própria história. Com isso, o conceito de vítima ganha melhores contornos pelo direito de narrar com sentido grupal, coletivo, as lembranças de modo ressentido em busca não apenas da cura da memória, como diria Paul Ricoeur, mas, sobretudo, de políticas públicas que impeçam novos equívocos no Brasil contemporâneo.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
MEIHY, José Carlos Sebe; RIBEIRO, Suzana Lopes Salgado. Guia prático de história oral: para empresas, universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Contexto, 2011.
* Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP)