Publicado em Red Pepper. Tradução de Isadora Otoni
No dia 8 de julho, mais de 30 mil presidiários recusaram refeições nas cadeias do estado de Califórnia. Vinte dias depois, mil deles continuam em greve de fome. Até meados de agosto, pelo menos 200 deles continuaram sem comer desde o início. Uma de suas principais exigências é o fim das celas solitárias, uma prática que desumaniza as pessoas, além do que está comprovado que essa prática prejudica irreparavelmente a capacidade de sociabilizar. Outras exigências incluem acesso à comida adequada e nutritiva e o fim do uso do “status de membro de gangue” para controlar e abusar dos presidiários.
Com a atenção mundial da mídia, a greve trouxe o sistema de prisão – corriqueiramente invisível – para a linha de frente da preocupação dos cidadãos. Com um prisioneiro disse, “a podridão não pode crescer onde existe o brilho da luz”.
No entanto, a podridão nasce e as sombras ainda reforçam um complexo prisional crescente no Reino Unido. No dia 21 de agosto, uma notícia na BBC trouxe à luz a história de uma mulher que esteve na cela solitária por mais de seis anos na prisão HMP Bronzefield, onde eu cumpri minha sentença de três anos e meio em 2009.
“Seu alojamento prolongado na unidade segregada aponta um tratamento cruel, desumano e degradante,” disse Nick Hardwick, o inspetor-chefe de prisões, “e nós usamos essas palavras deliberadamente.” [caption id="attachment_33666" align="alignleft" width="371"] Uma parcela de grupos trabalha por reformas, enquanto outras articulam exigências para a abolição (http://www.flickr.com/photos/v1ctor/)[/caption]O sistema presidiário do Reino Unido
Existem atualmente 85.690 pessoas nas prisões do Reino Unido, sem incluir os presos sob a Lei de Saúde Mental, em casas de segurança para crianças ou em detenções de imigrantes. As estatísticas oferecem uma introdução turbulenta ao sistema. 20% da população adulta carcerária esteve em tratamento (sob cuidados do governo) e quase 40% dos presos abaixo de 21 anos estiveram em tratamento quando crianças. A grande maioria sofre de dois ou mais distúrbios psicológicos (72% dos homens e 70% das mulheres). Pessoas de minorias étnicas estão aprisionadas em grandes escalas, representando mais de um quarto da população carcerária da nação.
A grande diferença entre gêneros também é preocupante. A população carcerária feminina cresceu 33% na década passada, com dois terços delas aprisionadas por crimes não violentos. Mais da metade já sofreu violência doméstica, e uma em cada três passou por abuso sexual. 66% tem uma criança dependente abaixo de 18 anos, deixando aproximadamente 17.700 crianças longe de suas mães. Os casos de automutilação na prisão têm 11 vezes mais chances de acontecer com mulheres.
As Estatísticas de Detenções relataram à segurança do governo que o período de janeiro a março de 2012 registrou 211 mortes, 5.611 casos de automutilação e 3.725 assaltos. Como ex-prisioneiro, eu estou completamente consciente de que os danos do sistema carcerário não acontecem apenas dentro das construções cinzentas e dos muros gigantes. Sua rede de inter-relações violentas atinge os prisioneiros, suas famílias, suas namoradas, seus amigos e comunidades por todo o mundo. É um complexo crescente de controle social, descrito por organizadores nos Estados Unidos com o “complexo da indústria carcerária”.
O complexo da indústria carcerária
O “complexo da indústria carcerária” é um termo usado para descrever a combinação de interesses do governo e indústrias que usam vigilância, policiamento e aprisionamento como soluções para problemas econômicos, sociais e políticos.
Nos Estados Unidos existem mais de dois milhões de pessoas presas em um dos complexos de indústria carcerária mais “avançados” do planeta. É um sistema baseado em racismo, repressão e capitalismo, e esse modelo cresce surpreendentemente. Em seu livro ‘Are Prisons Obsolete?’ (Prisões são Antiquadas?, em tradução livre), Angela Yvonne Davis escreveu: “A prisão se tornou um buraco negro onde os detritos do capitalismo contemporâneo são depositados”. Aprisionamento em massa gera lucros assim como devora a fortuna social, além de que isso reproduz as condições ideais para levar as pessoas à cadeia. Lutar contra o efeito mais óbvio do sistema capitalista – privatização – é cheio de desafios: como podemos evitar dar legitimidade a prisões públicas? Porém, os incentivos de “mercado” para prender seres humanos pode ser a gota d’água da justiça social.
Privatização
O sistema carcerário do Reino Unido já é o mais privatizado da Europa, com instituições privadas detendo 11,6% de todos os presos – quase 10 mil pessoas. Pesquisas têm mostrado que o custo total de alojar alguém em um presídio privado é alto. Essas instituições também têm sido criticadas por cortar gastos, falhar em deter pessoas e enfraquecer os padrões de segurança.
Lucro é a prioridade. Companhias multinacionais encontraram uma infinidade de oportunidades para coletar recompensas financeiras, desde vender equipamentos eletrônicos para realmente executar presidiários. Milhares de presidiários também estão empregados na produção de bens para o setor de companhias privadas, principalmente através do trabalho servil, embalando caixas e fones de ouvindo. Investimentos na reabilitação, no entanto, são contrários aos objetivos do negócio. A lei de imigração é outro fator importante. Quando a população é altamente regulada e controlada através de leis especiais, as companhias enfrentam uma diminuição dos presos. Mulheres de países estrangeiros é o grupo de presidiários que cresce mais rápido, representando agora um a entre sete mulheres encarceradas na Inglaterra e no País de Gales.
Organizando para abolir
Resistência ao sistema carcerário inclui vários confrontos. Alguns focam nos danos da intervenção, estendendo a educação, o treinamento e o aconselhamento a presidiários. Dando apoio aos indivíduos, nós podemos ajudar a desencarcerar nossas comunidades.
No entanto, sem reconhecer os fatores sociais e econômicos do sistema carcerário, nosso impacto será limitado. Uma parcela de grupos trabalha por reformas, enquanto outras articulam exigências para a abolição.
Como um ex-prisioneiro e um anarquista lutando para erradicar todas as formas de dominação, não quero ver essas prisões reformadas. Não me importo com celas maiores para colocar meus amigos dentro. Pressões por reformas têm servido apenas para manter esses centros de opressão por mais tempo. As campanhas históricas pelo fim da pena de morte mudaram as prisões alojamentos antes da punição para lugares de punições contínuas. Reformas por tratamento diferencial para mulheres carcerárias levou à criação de penitenciárias femininas, um novo mercado para o complexo da indústria carcerária e a população carcerária que mais cresce no mundo.
Então peço para começarmos a lutar pela abolição, e não pela reforma. Uma barreira que enfrentamos é que as prisões são tão arraigadas nos nossos psíquicos que nós não conseguimos imaginar um mundo sem elas. Eu desafio essa visão pobre e nos convido a explorar nossa própria relação com o aprisionamento.
Outubro passado escrevi um artigo, “O que será necessário para curar?”, discutindo a abolição e permacultura – um movimento que usa o planejamento para criar habitações humanas sustentáveis e encontrar nossas necessidades por abrigo, energia e cultura da forma mais ética possível. Identifiquei áreas de intervenção onde comunidades organizadoras ativas podem contrariar a linha pobreza-e-prisão e criar uma sociedade livre de cadeias. Nessa sociedade, nós todos podemos encontrar nossas necessidades, e nossos sistemas econômicos e sociais não funcionariam para enriquecer os ricos.
Critical Resistance (Resistência Crítica, em tradução livre), uma organização dedicada a construir um movimento de abolição dos presídios nos Estados Unidos, reconhecem isso: “Como um conjunto de crenças políticas, a abolição do complexo de indústria carcerária é baseado em um sentimento do que é possível. Então, em vez de pensar sobre o que nós queremos destruir, talvez seja mais prestativo pensar no que podemos construir para abolir o complexo. Nossa visão precisa incluir todos os afetados por esse sistema, não apenas o encarcerado por usar drogas pela primeira vez ou o condenado injustamente, mas todos.
“Nós precisamos ser capazes de criar ambientes para nós mesmos que forneça as necessidades básicas que precisamos para viver, como segurança e habitação estável; comida suficiente; acesso a tratamento médico; acesso a informação e ferramentas para processar essa informação; recursos para ser economicamente ativo; um meio de expressar opiniões, interesses e preocupações; proteção de danos físicos e psicológicos (ambos de indivíduos e do Estado). Nós precisamos começar a construir esse tipo de ambiente que não depende da punição e da injúria para proteger interesses do Estado e dos ricos ou poderosos.” No Reino Unido nós podemos não ter ainda um movimento explícito de abolição dos presídios. Entretanto, nós temos milhares de pessoas trabalhando pelas necessidades da comunidade de diversas formas, e juntos podemos ser aliados para fazer o sistema carcerário se tornar supérfluo.
Solidariedade
Enquanto nós continuamos a trabalhar em longo prazo a ideia de replanejar a sociedade, devemos continuar a lutar e a nos aliar aos aprisionados, para melhorar suas condições e vidas. Podemos apoiá-los para que superem a tentativa de alienação do Estado, que visa enfraquecê-los.
Os indivíduos na Califórnia que estão se recusando a comer estão resistindo com os únicos meios que sobraram. Sua coragem me leva a lágrimas, como agora eles estão sendo forçados a comer, com abuso de saúde e punições crescentes. Meus amigos que tentaram tirar suas próprias vidas na prisão estavam tão cansados da realidade que a capacidade de viver ou morrer era o único meio que os restaram. Quando a prisão te desumaniza sistematicamente, o único modo que às vezes o lembra de ser humano é sentir a dor de um corte ou a corda em seu pescoço. Nenhuma dúvida de que os indivíduos sofrendo de fome sabem quão desafiante é a vida em suas celas e o que realmente significa estar vivo.