Em entrevista, a professora e socióloga Maria Dolores de Brito Mota explica por que mulheres continuam sendo assassinadas no Brasil
Por Maria Eduarda Carvalho
O feminicídio se difere do homicídio por se tratar de um crime cultural, motivado por discriminação de gênero. É o que explica, em entrevista à Fórum, Maria Dolores de Brito Mota, socióloga e professora da Universidade Federal do Cerará, UFC.
[caption id="attachment_16662" align="alignleft" width="270" caption="Professora Maria Dolores de Brito Mota (Foto:Arquivo pessoal)"][/caption]Maria Dolores, líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família da UFC, explica os motivos que levam ao crime de gênero, que vem aumentando principalmente entre adolescentes. A socióloga também discorre sobre o papel da mídia e chama a atenção para os efeitos práticos da criação de um sistema de informação nacional sobre feminicídio no Brasil.
Revista Fórum – O Mapa de Violência 2012 publicado pelo Instituto Sangari revela que, entre 1980 e 2010, foram assassinadas aproximadamente 91 mil mulheres no país. Mais de 90% dos crimes ocorreram por questão de gênero, os chamados feminicídios. A que se atribui o feminicídio?
Maria Dolores – A uma cultura patriarcal machista e o nosso próprio código penal reflete essa cultura. Até pouco tempo era bastante aceitável, digamos assim, no âmbito do judiciário, as mortes por defesa da honra. Era um atributo que a sociedade patriarcal brasileira permitia. A própria novela Gabriela [atualmente exibida na rede Globo] retrata um caso desses. Era muito comum os homens se sentirem ofendidos quando as mulheres se envolviam em outras relações, bastava o simples ciúmes ou a recusa do fim do relacionamento, quando esse fim era colocado pela mulher. Na nossa cultura o homem define a relação, é o querer dele, o desejo dele que determina se uma relação continua ou não. E quando havia a recusa, quando o desejo da mulher se manifestava e ela não queria mais manter a relação naquele nível, o homem se dava ao direito de não aceitar e isso era levado até as últimas consequências. A cultura patriarcal é o que leva a um índice tão alto de feminicídio no Brasil.
Fórum – Muitas mulheres são, na verdade, meninas ainda, em grande parte adolescentes. O que esses feminicídios juvenis indicam?
MD – Essa é uma questão importante. As garotas cada vez mais jovens são alvo dessa violência de gênero, e não é só porque a gente vive uma cultura de violência generalizada. É que [a violência] sempre vai se voltar de forma mais forte para o sujeito colocado numa posição de vulnerabilidade e discriminação, como é o caso da mulher e da própria figura da menina, que é extremamente sexualizada. Estamos passando por um processo de sexualização da adolescência que estimula que as meninas sejam vistas e colocadas como objeto sexual. Isso é uma questão que o próprio movimento de defesa da criança e do adolescente vem se deparando. Há uma polêmica enorme, por exemplo, entre a secretaria de Direitos Humanos da presidência e a secretaria de Políticas para as Mulheres. Quando o movimento feminista trabalha com mulheres acima de 18 anos e encontram crianças de 11 ou 12 anos, que estão em situação de exploração sexual, eles encaminham para a secretaria de Direitos Humanos e para os movimentos em defesa da criança. Percebe-se que há uma ambiguidade, quem cuida dessas meninas? Isso é complicado, mas vejo esse fenômeno como um sinal de que há uma mudança na questão da adolescência. A infância está se encurtando muito. Isso ocorre por um processo cultural e, por outro lado, por conta da questão da sexualização muito forte na nossa cultura. Isto é uma outra discussão que precisamos fazer no Brasil: entender qual é o significado hoje da sexualidade, do corpo sem entrar em questões de moralidade. [caption id="attachment_16661" align="alignleft" width="300" caption="Marcha das Vadias, em Belo Horizonte: Mulheres têm se mobilizado contra o machismo (Foto: Fora do Eixo Minas)"][/caption]
Fórum – Qual a responsabilidade da mídia no feminicídio a partir do momento em que os meios de comunicação colocam em destaque a figura do agressor?
MD – É preciso falar da forma como a imprensa aborda a questão do feminicídio, porque ela não aborda como crime de gênero. Hoje, a gente passa por um processo de democracia que abrange todos os níveis da sociedade, por que a imprensa também não se compromete com isso? Ela se compromete até certo ponto, mas é preciso muito mais. É preciso assumir alguns compromissos com a construção de uma cultura mais cívica, mais cidadã e abordar de uma maneira diferenciada a questão da criança e do adolescente no sentido de não colocar a criança como culpada, quando ela é, na verdade, vítima do abuso sexual. Há uma forma de abordar que acaba por culpabilizar a criança e desloca a questão central, que é onde a sociedade brasileira hoje coloca a criança e o adolescente.
A imprensa precisa fazer uma abordagem diferenciada, não sensacionalista, dos crimes de gênero. Quando a gente trabalha com dados de imprensa - como eu tenho trabalhado desde 2006 - a gente percebe que ela subnotifica. Por exemplo, no Ceará temos um índice de 153 mortes por crimes de gênero, mas só 60 são noticiados, tudo bem que não é a função da imprensa noticiar tudo, mas que noticie bem, procure fazer um jornalismo mais investigativo, mais descritivo, coloque as circunstâncias, busque identificar os autores, ouvir a família e pessoas envolvidas. Precisamos trabalhar essa questão da mídia, na perspectiva de construir valores para as pessoas não aceitarem mais esse tipo de violência contra mulher, porque quem lê a notícia é influenciado pelo que está escrito.
Fórum – No ano seguinte à criação da Lei Maria da Penha, em 2007, houve uma pequena redução na taxa de violência contra a mulher, mas logo as estatísticas alcançaram altos índices novamente. Em sua opinião por que esses números continuaram numa crescente? Quais as medidas para conter esses índices além de prender o acusado?
MD – Esse volume intenso é, de fato, a incapacidade de uma cultura machista, patriarcal de aceitar que as mulheres tenham autonomia e possam decidir as suas vidas. As mulheres avançaram muito, se empoderaram, se fortaleceram. Temos um marco regulatório que envolve um conjunto de informações: a Lei Maria da Penha, casas de referência, tudo isso para fazer com que a mulher se sinta forte para dizer não, eu não quero mais esse tipo de vida. Só que os homens não passaram por um processo de mudança de pensamento sobre a condição deles. Há uma incapacidade dos homens em lidar com essa nova mulher, e o Estado tem que criar leis no sentido de construir políticas que possam impactar toda a sociedade, mudando valores. No caso do feminicídio, defendo que ele seja incluído na Lei Maria da Penha e que se diferencie do homicídio. É um desafio fazer isso, mas esse é um crime diferente por ser um crime construído pela cultura. É preciso atribuir a ele uma penalidade de crime hediondo bastante severa. O problema também é a impunidade. [caption id="attachment_16663" align="alignleft" width="225" caption="Assassinato de Eloá Cristina de 15 anos, em 2008, chocou o país. Seu ex-namorado invadiu sua casa e a fez refém de um sequestro que acabou fatal (Foto: Reprodução)"][/caption]
Fórum – A residência foi apontada em 40% das ocorrências como o local em que as mulheres foram assassinadas. Quais os danos que esses dados apontam na formação dos filhos e crianças que convivem com essas mulheres?
MD – No Brasil, isso ainda não está sendo trabalhado, mas as organizações feministas da América Latina de diferentes países estão bem avançadas nessa questão do enfrentamento do feminicídio e na questão dos filhos do feminicídio. E não é só filho, é toda uma marca que fica na família, quem vai cuidar dessa criança? É fundamental discutir isso no Brasil porque são muitas as crianças que presenciam o assassinato ou que encontram a mãe morta e sabem que foi o pai quem matou. É um desafio.
Fórum – Quais os efeitos práticos da criação de um sistema de informação nacional sobre feminicídio no Brasil?
MD – É difícil construir critérios unificados e distribuir por vários grupos em diferentes estados, mas a secretaria de Políticas para Mulheres tem condições de criar esse sistema de informação. Assim poderíamos sistematizar todos os dados sobre assassinato de mulheres, da imprensa ou da secretaria de segurança pública. Para ter acesso ao sistema judiciário, o juiz tem que autorizar, isso é uma limitação. Os dados que temos acesso são do laudo cadavérico, que não tem informações que digam quem matou aquela mulher, qual era a relação do assassino com a vítima, isso não aparece. A secretaria de Políticas para Mulheres pode estabelecer que as secretarias de Segurança de cada estado disponibilizem esses dados para construir um sistema de informação e que isso possa ficar disponível, porque a informação tem que ser pública. A transparência é fundamental, a secretaria tem muita coisa para fazer, mas isso é urgente.