Friamente, o ditador, hoje preso, afirmou que as vítimas estavam detidas ou sequestradas e que fez desaparecer seus restos “para não provocar protestos dentro e fora do país”
Por Francisco Luque (Publicado por Carta Maior)
Buenos Aires - O relato é cru, mas esclarecedor. O ditador argentino Jorge Rafael Videla admitiu que matou “sete ou oito mil pessoas” durante a ditadura. Friamente, o ditador, hoje preso, afirmou que as vítimas estavam detidas ou sequestradas e que fez desaparecer seus restos “para não provocar protestos dentro e fora do país”. “Cada desaparição pode ser entendida certamente como a maquiagem, ou dissimulação de uma morte”. Estas declarações estão incluídas no livro “Disposição Final, a confissão de Videla sobre os desaparecidos”, do jornalista argentino Ceferino Reato, publicadas hoje (13) pelo jornal La Nación, da Argentina.
Segundo o La Nación, o repressor descreve de forma detalhada o “método” utilizado durante a repressão ilegal, justifica o uso da tortura e destaca a influência da “Doutrina Francesa” usada na Argélia, na luta contra as guerrilhas.
"Não havia outra solução, (os militares) estávamos de acordo em que era o preço a pagar para ganhar a guerra contra a subversão e necessitávamos que não fosse evidente para que a sociedade não percebesse. Havia que eliminar um conjunto grande de pessoas que não podiam ser levadas à justiça nem tampouco fuziladas", afirmou o ditador.
Organismos de Direitos Humanos afirmam que o número de desaparecidos por ação da ditadura cívico-militar na Argentina corresponde a 30.000 pessoas. No livro, de próxima distribuição, Videla afirma que fez desaparecer corpos de pessoas mortas em tiroteios, como o do chefe do Exército Revolucionário do Povo (ERP) Mario Santucho, porque "era uma pessoa que gerava expectativas; a aparição desse corpo ia dar lugar a homenagens, a celebrações. Era uma figura que devia ser apagada". Sustenta também que a reação da ditadura não estava relacionada com uma “Solução Final”, mas com “Disposição Final”. “É uma frase muito utilizada pelos militares, e significa tirar de serviço algo por ser imprestável”, diz Videla.
O repressor sustenta que as pessoas que “deviam morrer” para ganhar a guerra contra a subversão o foram por sua preparação militar e ideológica. Enfoca seu relato no Exército Revolucionário do Povo (ERP), a quem aponta como “mais inimigo que os Montoneros”. “Era algo alheio, outra coisa. Os Montoneros guardavam algo de nacionalismo, catolicismo, do peronismo com o qual havia nascido", afirma.
O livro inclui testemunhos de outros chefes militares, guerrilheiros, políticos, funcionários e sindicalistas que permitem reconstruir o contexto histórico no qual Videla e suas tropas decidiram tomar o poder, no dia 24 de março de 1976, e matar e fazer desaparecer os restos dos milhares de pessoas às quais consideravam "irrecuperáveis".
Com respeito ao destino final dos desaparecidos, Videla sustenta que “não existem listas definitivas, apenas algumas parciais e desorganizadas”. Esta é a segunda vez que o ditador Videla se refere midiaticamente aos desaparecidos. Em dezembro de 1977, frente à conferência de imprensa que procurava resposta sobre as suspeitas de detenção e desaparição de pessoas, Videla filosofou: “O desaparecido, enquanto permaneça como tal, é uma incógnita. Se o homem aparecesse teria um tratamento "x", mas enquanto seja desaparecido, não pode ter um tratamento especial. Os desaparecidos são isso: desaparecidos; não estão nem vivos nem mortos; estão desaparecidos, não têm identidade, não são”.
A cobertura que o jornal La Nación dedicou nos últimos tempos às declarações do ditador Videla e suas justificativas dos crimes de sua ditadura causaram desconforto. Em fevereiro deste ano, o tradicional veículo, pertencente à também tradicional família Mitre, publicou parte da entrevista que o repressor concedeu à revista espanhola Cambio 16. Entretanto, no dia 10 de abril passado, em seu editorial intitulado “Memória completa e reconciliação”, tentou revalorizar a “teoria dos dois demônios” propondo uma espécie de “reconhecimento” aos soldados, oficiais e policiais que morreram “cumprindo com seu dever” na década de 70, além de se pronunciar contra a anulação das leis de obediência devida e ponto final, reivindicando-as junto com os indultos aos genocidas, como “avanços à reconciliação”.
“A este jornal só podemos reconhecer o mérito da coerência histórica. São os mesmos que apoiaram todo golpe de estado presenciaram e protegeram em suas páginas a ditadura militar genocida. São os que fizeram negócios milionários com o governo de fato, cujo caso emblemático é a aquisição da empresa Papel Prensa”, afirmou o presidente da Federação de Estudantes da Universidade de Buenos Aires, Ignacio Kostzer.
Tradução: Libório Junior