Se a religião interfere no Estado, traçando leis e políticas públicas de caráter religioso, a pluralidade de opções para mulheres e o respeito a seus desejos e sua diversidade deixam de existir.
Por Cynthia Semíramis*
Uma grande notícia desta semana foi o TJ-RS proibir símbolos religiosos nas dependências da Justiça gaúcha, pois é uma bela iniciativa para efetivar o Estado laico. Receber essa notícia em plena semana do Dia Internacional da Mulher nos lembra da importância do Estado laico para que as mulheres tenham direitos e a liberdade de serem quem desejarem ser.
Durante muito tempo as políticas de Estado para mulheres foram definidas a partir da visão religiosa de mundo, especialmente a cristã e, mais especificamente ainda, católica. Nessa perspectiva, as mulheres seriam inferiores e por causa disso deveriam se submeter eternamente ao marido (o divórcio era proibido) ou pai, e não poderiam ter direitos políticos. Casamento e maternidade eram tratados como as únicas formas possíveis de vida feminina. O direito à educação só deveria existir para treinar mulheres para a maternidade e administração do lar, pois se considerava que o trabalho intelectual impediria a gravidez. Com isso, as mulheres foram relegadas ao analfabetismo ou a uma educação escolar rudimentar. As mulheres que não se encaixavam nesse modelo (lésbicas, prostitutas, mães solteiras, mulheres separadas do marido, etc) foram (e ainda são) perseguidas tanto pela religião quanto pelo Estado.
À medida que se fortaleceu a separação entre Estado moderno e religião, estabelecendo os princípios do Estado laico, foi possível também perceber que mulheres são plurais e que a visão religiosa restringia a liberdade das mulheres. E assim, mulheres lutaram para o Estado reconhecer seu direito de ter acesso aos estudos, a profissão, ao voto. Ainda hoje brigamos para não sermos vítimas de violência por sermos mulheres, pra não haver discriminação no trabalho, para podermos escolher o que fazer com nosso corpo, para não reduzir a mulher ao limitado modelo religioso. Mulheres querem viver sem serem obrigadas a serem mães (filhos são escolha, não devem ser nem punição nem obrigação), querem trabalhar e estudar na área que desejarem, querem ter relacionamentos afetivos e sexuais além dos modelos sacralizados pela religião. E não querem ser perseguidas por viverem de forma diferente da que as religiões preconizam para elas.
Em um Estado laico os valores da religião de alguns não podem ser impostos a todas as pessoas. E assim, abriu-se caminho para o Estado laico reconhecer as mulheres como sujeitos de direito, perceber sua diversidade e garantir seus direitos: todas as mulheres devem ser reconhecidas e protegidas pelo Estado, e não só as que seguem um determinado modelo religioso.
O Estado laico pune quem discrimina mulheres, cria leis para garantir direito de voto, de estudar, de trabalhar e para diminuir a desigualdade de gênero. O Estado laico incentiva escolas mistas, seculares, com a mesma educação para meninas e meninos. O Estado laico vê as mulheres além da questão reprodutiva, criando políticas públicas de atenção integral à saúde (e não apenas ligadas aos órgãos reprodutivos). O Estado laico exclui das leis termos e posicionamentos pejorativos criados em uma época em que o Estado incorporava o preconceito religioso para separar as mulheres em duas categorias: as que seguiam o modelo religioso e por isso deveriam ser protegidas pelo Estado, e as que não seguiam a religião e por isso ficavam à margem da proteção estatal. Juízes em um Estado laico interpretam a lei de forma a não incorporar preconceitos religiosos.
É necessário reforçar esses papéis desempenhados pelo Estado laico para garantir os direitos das mulheres porque nos últimos tempos temos visto exatamente o oposto.
Embora o Brasil seja um Estado laico, cada vez mais surgem propostas legislativas calcadas no discurso religioso, procurando forçar as mulheres a se submeter apenas aos papéis determinados pela religião cristã (bolsa-estupro,cadastro de gestantes, para ficar nos mais óbvios). Políticas públicas (como a Rede Cegonha e a recente Medida Provisória 557 para cadastramento de gestantes) estão sendo desenvolvidas com prioridade, reforçando a maternidade e ignorando outras possibilidades em relação à vida e saúde das mulheres. Tanto decisões judiciaisquanto a abordagem midiática toleram e minimizam a violência contra mulheres por meio do discurso religioso que as sacrifica em nome da maternidade e da família.
A liberdade de escolher quem queremos ser só é possível quando o Estado é laico. Se a religião interfere no Estado, traçando leis e políticas públicas de caráter religioso, a pluralidade de opções para mulheres e o respeito a seus desejos e sua diversidade deixam de existir.
Neste Neste Dia Internacional da Mulher, quando tantas vozes se levantam para enaltecer apenas a mulher-santa-abnegada do modelo religioso, é preciso lembrar: os direitos e a liberdade das mulheres só existem quando o Estado é laico.
Foto: 4ª Marcha das Margaridas 2011 (Antonio Cruz/ABr)