A proposta de reforma do Código Eleitoral, consolidada no substitutivo ao Projeto de Lei Complementar 112/2021, representa um esforço técnico e político relevante ao buscar unificar, em um único diploma, as diversas normas que regem o processo eleitoral brasileiro. Com quase 900 artigos, a iniciativa propõe mudanças que vão da regulamentação da auditoria das urnas à reestruturação das regras de propaganda, incluindo mecanismos de combate à violência política e ações afirmativas para ampliar a diversidade na representação parlamentar.
A consolidação normativa atende à necessidade de conferir maior segurança jurídica ao processo eleitoral, padronizando regras hoje dispersas em leis infraconstitucionais e resoluções do TSE. Contudo, por trás dessa racionalização, surgem desafios substantivos que merecem reflexão crítica, especialmente quanto à efetividade das ações afirmativas e à preservação da pluralidade partidária — pilares constitucionais da democracia brasileira.
No campo das ações afirmativas, o texto avança ao estabelecer a reserva de cadeiras legislativas para mulheres. É igualmente relevante a criminalização da violência política de raça, essencial para garantir a segurança de candidaturas de grupos historicamente marginalizados. No entanto, embora positivas, tais previsões ainda enfrentam obstáculos à implementação. A ausência de critérios objetivos e a dependência de regulamentações futuras comprometem seu potencial transformador. Além disso, o percentual de 20%, inferior ao patamar de 30% — reconhecido como ponto mínimo para romper o ciclo de sub-representação — revela limitação estrutural. Ações afirmativas eficazes não devem restringir-se à correção simbólica ou a metas modestas, mas reconfigurar os alicerces da participação política. A experiência brasileira mostra que medidas tímidas tendem a ser insuficientes diante de barreiras institucionais e culturais. Assim, embora represente avanço, a limitação percentual pode frustrar expectativas de mudança, perpetuando o déficit de justiça de gênero no sistema representativo.
Outro ponto sensível é a reestruturação das regras para distribuição das sobras eleitorais. A redação das três fases busca alinhar o texto à jurisprudência do STF (ADIs 7.228 e 7.263), que declarou inconstitucional a exclusão automática de partidos sem quociente eleitoral. A terceira fase, que permite a participação de todos os partidos com candidatos, é um avanço. No entanto, o endurecimento da segunda fase — que antes admitia partidos com 80% do quociente e agora exige seu cumprimento integral — compromete o equilíbrio do sistema proporcional, reduzindo a competitividade e dificultando o acesso de partidos médios e novos à representação, com impacto negativo ao pluralismo político.
A Constituição de 1988 consagra a pluralidade partidária e a diversidade social como fundamentos da ordem democrática. Garantir a diversidade ideológica e a presença de mulheres, negros, indígenas, pessoas LGBTQIA+ e outros grupos marginalizados nos espaços de poder é essencial para a legitimidade das decisões públicas e para a construção de um sistema verdadeiramente representativo. Por isso, as ações afirmativas devem ser vistas como parte de um processo contínuo de reparação histórica e inclusão substantiva, e não como concessões transitórias.
Em um contexto de ataques sistemáticos à política e de erosão da confiança institucional, a reforma deve ser encarada como oportunidade estratégica para resgatar a credibilidade do processo político. Ao valorizar o pluralismo, regular de forma equilibrada a propaganda, combater a violência política e promover diversidade na representação, a proposta pode ajudar a restaurar a imagem da política como espaço legítimo de escuta e construção coletiva do bem comum.
Mais do que um ajuste técnico, a reforma do Código Eleitoral deve marcar uma inflexão na forma como o Brasil compreende e pratica a participação democrática. Em vez de se limitar à padronização normativa, pode abrir caminho para uma democracia mais justa, inclusiva e representativa — que reconheça a diversidade do povo brasileiro e transforme a política em espaço de pertencimento e transformação. Nesse contexto, a condução do processo pelo senador Marcelo Castro, pautada pelo diálogo institucional, realização de audiências públicas e acolhimento de contribuições plurais, confere legitimidade à proposta e simboliza um avanço relevante, especialmente em tempos de descrédito nas instituições e fragilidade no debate público.
*Carolina Lobo é advogada, doutoranda e mestre em Direito Político pela UFMG, especialista em Direito Eleitoral pela PUC Minas, é coordenadora do Núcleo de Direito Eleitoral da Escola Superior de Advocacia de Minas Gerais (ESA – OAB/MG), conselheira da OAB/MG, integra o Instituto Brasileiro de Direito Parlamentar (PARLA) e a Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.