No último domingo, o Brasil fez história conquistando um prêmio inédito para o país: o Oscar de Melhor Filme Internacional por “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles. Em clima de Copa do Mundo, o que deveria ser uma celebração virou um show de horrores virtual, quando parte da torcida brasileira não aceitou a “derrota”, se é que se pode chamar assim, de Fernanda Torres na categoria Melhor Atriz.
A festa do cinema brasileiro, pela primeira vez reconhecido pelo prêmio da indústria cinematográfica estadunidense, foi ofuscada pelo desrespeito com Mickey Madison, premiada como Melhor Atriz por “Anora”, de Sean Baker (de “Tangerine” e “Projeto Flórida”). Fernanda Torres certamente merecia receber o prêmio, mas a reação virulenta contra a sua “concorrente” traz a reflexão: o brasileiro, além de não saber perder, também não sabe ganhar?
“Anora” era o franco favorito da noite, e teve seu favoritismo confirmado ganhando cinco das suas seis indicações, incluindo Melhor Filme, Melhor Roteiro Original e Melhor Direção. O filme veio de uma campanha arrebatadora desde que ganhou o Festival de Cannes, em maio. Seria muito estranho não considerar Mickey Madison, que havia acabado de ganhar o BAFTA (o equivalente inglês ao Oscar), como uma potencial ganhadora na categoria, mesmo que a vitória do SAG indicasse Demi Moore como a favorita por “A Substância”. Isso porque “Anora” não existiria sem Mickey: se os votantes da Academia se impressionaram com o longa-metragem, era impossível ignorar sua atuação arrebatadora. Mickey Madison, em “Anora”, é um verdadeiro “tour de force”.
Torres, Madison e Moore competiam por filmes excelentes, políticos e atuais, cada um à sua maneira. Fernanda comoveu o mundo com a força de uma mãe que resistiu, como pôde, à ditadura civil-militar brasileira. Moore protagonizou a obra de horror mais instigante dos últimos anos, criticando a obsessão midiática pela beleza e pela juventude, em um corajoso “body horror” que não era para qualquer estômago. E Madison encantou em um papel dificílimo de uma trabalhadora sexual que é ludibriada com a suposta oportunidade de mudar de vida, em um drama que, disfarçado de comédia, revela as dores e desilusões de uma stripper, uma obra ousada e repleta de camadas.
Uma pena que uma vitória tão importante para o cinema nacional tenha sido, para alguns, algo menor do que a raiva por ter “perdido” para “Anora”, seja por sua atriz ser jovem, ou por interpretar uma trabalhadora sexual. O chorume foi aberto e revelou uma onda de machismo escancarado, desmerecendo o trabalho de Madison como se o fato de ela ser jovem ou de sua personagem ser uma stripper fossem desmerecedores do reconhecimento de seu trabalho como atriz, ou mesmo avacalhando o filme como um soft porn, sem qualquer sensibilidade ao trabalho ousado e perspicaz de Sean Baker. E o Brasil acordou no dia 3 de março, Dia Internacional dos Direitos dos Trabalhadores do Sexo, com, pasmem, tweets revoltados até por Madison ter dedicado o seu prêmio às trabalhadoras sexuais!
É fato que o Oscar não é sobre a qualidade dos filmes, ou apenas sobre isso. É uma festa do marketing, em primeiro lugar. Sendo assim, o reconhecimento de um filme independente e ousado como “Anora”, e não algo mais palatável e convencional como “Conclave” ou “O Brutalista”, é um ponto positivo. É como Fernanda Torres bem disse: “Anora” é primo de “Ainda Estou Aqui” e o Oscar 2025 foi sim a celebração do cinema independente. Da animação “Flow”, da Letônia, desbancando os concorrentes hollywoodianos, a um filme falado em português sobre a ditadura civil-militar brasileira ganhando do musical francês com elenco de peso, a “Anora” desbancando os orçamentos milionários de “Wicked” e “Duna - Parte 2”. A história, em suma, não se repetiu como em 1999: ela foi feita.
Claro que gostaríamos de ver Fernanda Torres saindo com a estatueta. Particularmente, gostaria também que “A Substância” tivesse tido maior reconhecimento, principalmente em direção - Coralie Fargeat foi a primeira mulher indicada por um filme de horror -, que “Emília Pérez” tivesse saído de mãos abanando e que Jeremy Strong e Sebastian Stan, os atores de “O Aprendiz”, tivessem sido premiados. Mas nada justifica diminuir Mickey ou “Anora” por conta da decepção de não termos levado o prêmio que queríamos. A vida não é como nós queremos, muito menos as premiações. Mas, como diria Fernanda Torres, a vida presta! Vamos celebrar o cinema nacional, o cinema independente e as boas histórias!