No próximo mês de abril, completarei 28 anos de vida aqui nos Estados Unidos. Vim com 27 anos e agora, para meu susto, alguma frustração e um grande pesar, me deparo com o fato de que vivi mais da minha vida aqui do que no país onde nasci.
Saí da Mooca baixa, perto do Glicério e do centro, onde o Rio Tamanduateí me marcou profundamente. Antes pela sua presença volumosa, suas beiradas ciliares já danificadas; hoje, pelo seu assassinato: a cobertura completa de cimento, tornando esse rio nada mais do que um escoadouro de água suja.
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Hoje, vivo entre a cidade de Nova Iorque onde leciono no Seminário Teológico União — Universidade Columbia, e o centro da Pensilvânia onde minha família mora. Sou influenciado pelo Rio Hudson com sua potência de longa extensão e também o Rio Susquehanna, talvez o Rio mais antigo do mundo, de mais de 400 milhões de anos — uma entidade que demanda nossa maior reverência!
São Paulo e Nova Iorque me fazem viver imerso no cimento, uma ecologia que não considera nada que não seja o ser-humano como algo digno e vivo. Rios, plantas, árvores, pessoas pobres, tornam-se todos presenças descartáveis e incômodas.
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Ah,, sou um cidadão-imigrante, tenho minha nacionalidade brasileira, minha alma nasceu no Hospital Modelo, no bairro da Liberdade. Toda vez que volto ao Brasil, e tento fazê-lo com frequência para ver Mainha, a Dona Esther, agora com 94 anos, as pessoas sempre me lembram que não conheço mais o país. Não sou mais daí. Talvez um dia, se eu voltar, entenderei o Brazil com “ésse.” Esses lembretes me desesperam. Leio os jornais todos os dias, me informo sobre as lutas sociais, ajudo financeiramente algumas instituições de luta, sigo nossos artistas e tento viver o pulso inconstante de nossa brasilidade. Tanto que escrevi um livro em meio a duas pandemias: COVID-19 e a do governo Bolsonaro. O título do livro é Manual de Sobrevivência Teológica no Brasil. Claro, no lançamento alguém me questiona/vaticina: “como escrever um manual de sobrevivência se você não vive aqui”? Um golpe duro, mas verdadeiríssimo! Mesmo assim, acho o livro fundamental para se fazer o que Jesus disse para não fazer: separar o joio do trigo. Hoje, mais do que nunca, precisamos fazer isso se quisermos resgatar qualquer forma de um Cristianismo mais generoso e menos bélico, mais democrático e menos fascista, mais amoroso e menos raivoso, que se deixa mais afetar do que queira afetar. De toda forma, hoje sou um cidadão brasileiro que carrega consigo a necessária estampa de imigrante.
Aqui, nos Estados Unidos, porém, sou um imigrante com cidadania legal. Recebi minha cidadania alguns anos atrás, mas meu sotaque, meu jeito de pensar, de me relacionar, o meu jeito solto de usar o corpo —de tocar no braço dos outros ao falar, minhas pedagogias de ensino, minhas piadas, tudo, absolutamente tudo, me faz lembrar, ou melhor, me fazem lembrar que não sou daqui. E nunca serei. Minha família é daqui: tenho duas filhas e um filho adotados, minha esposa pertence a gerações de alemães, irlandeses e holandeses que vieram para esse país há duzentos anos. Minha participação nessa família, algo como um enxerto artificial, não é suficiente para me tornar, de fato, um cidadão. Serei sempre um imigrante, que possui um pedaço de papel que me permite residir aqui.
Quando cheguei, vim trabalhar com imigrantes não documentados, na sua maioria brasileiros de todas as partes do Brasil. Formávamos uma comunidade religiosa com pessoas de várias religiões, orientações sexuais e mesmo um ateu convicto que precisava de pertencimento. Éramos um zoológico religioso.
Durante esse tempo aprendi como o governo dos Estados Unidos lidava com os imigrantes sem documentos. Todos os imigrantes não documentados eram empregados, mas sem o número oficial do seguro social. Depois do primeiro pagamento, o governo enviava uma carta dizendo que o número social não estava correto, e não estava mesmo porque eram números inventados. Mas, com essa carta, enviavam um número de pagamento de imposto, que deveria ser incluído nos pagamentos da empresa. Uma vez feito isso, ninguém mais os incomodava. E por quê? Porque esse dinheiro e essa mão de obra barata são, convenientemente, muito bem-vindos! Imigrantes indocumentados nos EUA pagam quase US$100 bilhões em impostos a cada ano. Dinheiro que não volta pra eles em termos de saúde e aposentadoria. Um dinheiro que o governo faz o que bem quiser em favor do povo documentado do país.
Essa comunidade trabalha duro, geralmente em empregos difíceis e não raro com remuneração inferior à dos cidadãos documentados. Fazem de tudo: trabalham na agricultura, na construção civil, nas frigoríficos, em incubadoras de gelo para embalar peixe, realizam a maioria dos serviços essenciais, como jardinagem, atendimento em restaurantes e lojas, e limpeza em prédios e casas particulares. Eles sempre precisam trabalhar muito. E também têm que lidar com abusos sexuais, morais e financeiros o tempo todo, vitimados tanto pelos cidadãos como pelos imigrantes mais antigos.
Nunca houve uma busca pelos imigrantes sem documentos, a não ser quando o governo queria mostrar para o povo que estava fazendo a lei do país ser cumprida. Então pegavam um grupo qualquer em algum lugar do país como boi-de-piranha e divulgavam nas mídias o trabalho da imigração impondo a lei do país. Curiosamente, os filhos das famílias de imigrantes jogavam bola com os filhos dos funcionários da imigração! Nos 4 anos que trabalhei com imigrantes não documentados nunca vi a deportação de ninguém.As deportações ocorrem mais na fronteira entre o México e os Estados Unidos.
A política de imigração dos Estados Unidos sempre foi horrível. Tanto o Partido Democrata quanto o Partido Republicano nunca fizeram valer uma política de cuidado e relação digna com os imigrantes ou seus países de origem. A imigração, assim como a maioria das coisas nesse país, é tratada tendo o lucro como ponto de partida e a violência como instrumento. Historicamente, as fronteiras sempre estiveram abertas e pessoas e animais transitavam livremente de um lado para o outro. Foi com Bill Clinton e a sua política devastadora contra as drogas que as coisas foram ficando mais violentas. As fronteiras sempre foram vistas como um ativo monetário a ser explorado pelas forças financeiras. Pessoas e animais, florestas, rios, parques e espaços naturais, tudo compõe um olhar de commodities e de exploração financeira. Assim, a fronteira é usada pelos dois partidos do país, Democratas e Republicanos, como moeda de troca com os “big donors” ou os grandes patrocinadores de campanhas. Se o Partido Republicano vence as eleições, o lucro é feito com as grandes construtoras dos muros na fronteira do país. Se quem ganha são os Democratas, então o lucro vai para o setor de tecnologia, de drones, equipamentos de alto alcance e maquinário pesado. Porque hoje, seja qual for o partido da vez, a fronteira tem como sua maior característica a profunda militarização da região. Homens armados até os dentes para lidar em sua esmagadora maioria com gente simples, como a sua e a minha família.
A retórica dos dois partidos tenta parecer diferente quanto `a imigração. Os Democratas sempre afirmaram ser abertos aos imigrantes. Já os Republicanos, contra. Entretanto, na prática, nada os diferencia do mesmo vetor de lucro e violência quando tratam os imigrantes. Quem acha que foi Donald Trump quem começou com essa truculência com os imigrantes está completamente enganado. Os Presidentes Democratas foram sempre os piores presidentes para os imigrantes. Bill Clinton militarizou a fronteira. Barack Obama foi o maior traiçoeiro, e o mais violento presidente em relação aoss imigrantes desse país. Tanto que ele é conhecido entre os imigrantes não como o presidente em exercício (President in chief) mas como o Deportador em exercício (Deporter in chief). E Joe Biden, tentando ganhar chão com as denúncias de Trump, revogou muitas das políticas mais aberta de imigração do país. Foi um horror.
Assim, a retórica de Donald Trump não tem nada de nova. Ela emerge de um profundo histórico de medo e ódio contra os imigrantes, presente desde sempre na sociedade estadunidense. No entanto, a retórica truculenta, ostensivamente violenta e desumanizadora de Trump acordou todos os vulcões adormecidos debaixo da camada tênue de uma suposta tolerância de fachada. O que sempre orientou os partidos políticos do país foi a noção de “Estado de Direito” sem assumir que esse estado e esse direito se estabeleceram pelo roubo da terra dos indígenas e pela escravização dos povos negros. A democracia sempre foi, e ainda é, questão de classe, código postal, cor ou ancestralidade. A democracia estadunidense é a mesma do Brasil — aquela que privilegia uma classe, uma raça, uma cor, um modo de vida e uma forma de pensamento: o branco.
Com a chegada de Trump ao poder pela segunda vez, o projeto suicidário do capitalismo colocou no poder quem eles mais precisavam para se autoaniquilar: os bilionários. Embora os EUA ainda não sejam uma oligarquia no pleno sentido da palavra, sua ascensão agora é muito clara. O “Estado de Direito sob Trump agora percorre todas as letras do abecedário fascista. O medo, enquanto sentimento político, é sua forma de atuar. E o medo precisa do ódio como forma de resposta e sobrevivência. Assim, todos os problemas do país caíram nas costas dos imigrantes. Em uma nação que foi “fundada” ou melhor, capturada por imigrantes que a tudo roubaram — e ainda roubam — dos povos originários, é preciso agora delimitar os novos inimigos verdadeiros: os imigrantes! Imigrantes aqui são considerados tudo o que não é o “WASP way of life", ou seja, a maneira de viver do protestante anglo-saxão branco.
Assim, os inimigos vêm em cores diferentes, falam com sotaque, são parte de uma outra religião, vivem em classes abaixo da branca estadunidense, e chegaram não faz muito tempo. Para dar ordem e uma geografia à esse pensamento de exclusão e morte, a extrema direita nos Estados Unidos está requentando a noção de Nativismo, seguindo grupos como a Ku Klux Klan, aqueles que propõem o Nativismo como uma visão de mundo onde o bem-estar de um “lugar” depende do bem-estar das pessoas que ali habitam. Para eles, esse bem-estar geral só é possível se seus habitantes forem nativos, ou seja, residentes brancos de uma certa classe que tenham vivido nesse lugar por um certo tempo. Recém-chegados não podem fazer parte do nativismo e por isso não são bem-vindos! Esse sentimento a-lá Ku Klux Klan hoje vai se espalhando por todo o país.
Assim, a imigração vai se tornando aqui, em toda Europa e em várias partes do mundo, uma porta de entrada para o fascismo, reinaugurado no ritual de posse do presidente Trump. Assim, como ocorreu na Argentina, uma série de ordens executivas foram jogadas sobre todos para bagunçar tanto o pensamento quanto a reação política. Tática essa que agora já compreendemos melhor. E a promessa de deportar todos os imigrantes para bem longe parece mesmo estar acontecendo, mesmo que numa proporção menor do que a esperada, porque hoje, sem imigrantes, esse país simplesmente não se sustenta.
A agência de imigração do país atende pela sigla ICE, que significa, em português, Imigração e Fiscalização Aduaneira, ou simplesmente La Migra, como é conhecida pelos imigrantes Latinxs. O papel da La Migra tem sido concentrar esforços na busca de imigrantes por todo o país como tática para espalhar um medo generalizado. Infringindo as próprias leis locais, os agentes de La Migra param quem eles quiserem e em qualquer lugar. Então perguntam — quando perguntam — se são cidadãos americanos, e fazem as prisões. Em uma recente operação em uma fábrica, tanto imigrantes como cidadãos foram presos e jogados em alguma cela de cadeia e lá ficam por alguns dias sem direito sequer a fazer um telefonema. Essas buscas e ameaças têm assombrado inclusive os indígenas do país, que também têm sido detidos irregularmente.
Diante das recentes experiências que os têm assustado, muitos líderes dos povos indígenas têm criado formas de orientar seus membros frente às abordagens da polícia local ou da agência de imigração . Além do mais, cidadãos comuns têm se vestido da polícia da imigração e ido às ruas “caçar” imigrantes em nome da lei. Nos estados governados por republicanos já existem esforços para autorizar esses caçadores de imigrantes, oferecendo a eles $1000 de prêmio por qualquer informação que possa resultar na detenção imigrantes sem documentos. No estado do Tennessee, por exemplo, já existe uma proposta de cobrar os pais e mães que matricularem crianças imigrantes em escolas públicas. E outras leis absurdas como estas estão sendo propostas em todo o país.[1]
Não bastasse, a polícia agora pode entrar nas escolas, igrejas e hospitais e invadir as cidades santuários que antes significavam lugares de paz para os imigrantes. Agora, não mais.
Todo o movimento contra os imigrantes tem o intuito de disseminar medo. O governo tem usado cineastas para criar vídeos curtos que são postados pela Casa Branca na rede social X e nas TVs a cabo. Celebridades são usadas para chamar a atenção e difundir todo o conteúdo de força, para mostrar que o presidente Trump é mesmo durão e não tem nenhuma misericórdia. Nos vídeos, a cabeça de cada imigrantes carrega um sinal laranja que diz: ARRESTED/PRESO, com acusações inventadas na maioria das vezes, e abaixo trazem o logotipo do governo dos Estados Unidos.
As comunidades de imigrantes agora estão todas tomadas por medo e ansiedade. Muitos não saem de casa quando podem. A tática do medo é o ponto nevrálgico do fascismo que vai se espalhando como uma praga e vai matando a coragem e a força por onde passa. Nesse ínterim, várias organizações estão se levantando para ajudar a população imigrante a conhecer seus direitos.
Mas toda essa concepção de busca e apreensão, algemas e deportação tem origem em Stephen Miller, a cabeça pensante da política migratória de Trump e que tem muito poder nessa nova versão de Trump. Sua maior influência é o livro “O Campo Dos Santos,” de Jean Raspail, publicado pela Ediouro que também é o livro de cabeceira sobre imigração para figuras como Steve Bannon e Marine Le Pen. Publicado originalmente em francês , em 1973, fala de uma invasão assombrosa de imigrantes pardos e negros que estavam indo para a Europa a fim de destruir a civilização ocidental. Jean Raspail, Católico, considera que o papa Francisco é parte dessa frouxidão do Ocidente quanto aos imigrantes. Em uma entrevista ao El País, disse sobre o livro:
“O tema principal do livro, no fundo, não é a invasão do Ocidente pelo Terceiro Mundo. Na verdade, é um romance que descreve a covardia, a fraqueza, a ausência de ideais, a decadência total em que o Ocidente, ou seja, nossa Europa, está afundado já há algum tempo. Temos pela frente uma pilha de pessoas com motivos poderosos e as deixamos entrar em massa por uma espécie de indiferença triste.”[2]
Tudo isso me assombra! Eu cresci em um ambiente religioso que dizia que a terra pertencia a Deus e que todos tinham o direito de viver onde quisessem. O movimento sobre a terra deveria ser feito sem fronteiras. E ainda acredito nisso. Mas, não quero me alongar mais do que já me alonguei.
Escrevo porque esse artigo nasceu do susto de estar vivendo algo que só conhecia pelos livros: o fascismo. Escrevo porque agora sinto medo. Sou imigrante e se falar “oi” nessa terra, meu sotaque me “condena”. Não sou daqui. A polícia tem levado quem eles ”acham” que são ilegais. Nunca tive medo de andar aqui. Até agora. Se vejo um policial, me assombro ainda mais do já me assombrava. Hoje sou imigrante-imigrante e não sei o que vai acontecer. Só sei que esse país caminha a passos largos para um lugar que não sabemos, mas que também sabemos. As reações a tudo isso têm sido esparsas, individualizadas e na base do grito de alguns ou do silêncio da maioria. Eu não sei muito o que pensar ou o que fazer. Só não aceito que me venham falar que estou exagerando. Foi exatamente isso que as pessoas diziam umas às outras quando Hitler ascendeu ao poder.
*Claudio Carvalhaes é professor do Seminário Teológico União em Nova York. Universidade Columbia.
** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.
[1] Molly Hennessy-Fiske, “Redstates consider fingerprinting children, certifying bounty hunters in immigration crackdown,” 4 de fevereiro de 2025, https://www.washingtonpost.com/immigration/2025/02/04/undocumented-immigrants-states-legislatures-bills/
[2] Marc Bassets, O escritor que inspira Marine Le Pen e Steve Bannon. Jean Raspail, autor de romance admirado pela extrema-direita francesa, defende visão de Europa sitiada. Paris - APR 09, 2017 https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/08/cultura/1491668924_797110.html