MADONNA

De Ney Matogrosso à Madonna: os conservadores brasileiros entregam-se à subversão

Bolsonaristas se desculparam por ver Madonna em Copacabana; militares e seus familiares assistiram Ney Matogrosso em Brasília no auge da ditadura

Madonna em Copacabana e Ney Matogrosso em Santos.Créditos: Felix Averbug/Ato Press/Folhapress/Marcela Mattos/Montagem
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Por Rodolfo Godoi*

Qualquer fã de Madonna ou de Ney Matogrosso pode pontuar as semelhanças entre ambos. Desde a irreverência sexual, os recordes em venda de discos, a força da libido em cena, a linguagem cênica nas apresentações, além da importância desses ídolos para as minorias sexuais.

Durante a ditadura militar brasileira, Ney Matogrosso rebolava em frente as câmeras e já debochava da política dos bons costumes, completamente desbundado. A censura tinha dificuldades em capturá-lo, pois o cantor não levantava bandeiras explicitas da esquerda ou do comunismo, seu discurso estava em seus gestos. De todo modo, a Marinha brasileira não tirou os olhos do cantor.

Ney Matogrosso durante show em Santos. Crédito: Marcela Mattos/@mmattos.fotografia

Dona Maria – censora enviada pelo governo – tinha acesso livre aos camarins e ao palco desde a época do Secos e Molhados, diz-se que havia até uma certa afeição entre os dois. Em 1976, Ney Matogrosso fazia seu segundo espetáculo solo, chamado Bandido. Ao mesmo tempo, estávamos no auge da operação Condor, período de terror estatal coordenado no cone sul, com apoio dos Estados Unidos. Em apresentação no Recife, a ditadura brasileira tentava fazer seu dever de casa moralista. O governo militar queria, na verdade, dirigir a cena. Isso porque, em certo momento do show, Ney Matogrosso colocava um enfeite de penas na frente do sexo, e rebolava em vai-e-vem simulando um ato sexual. Os censores pediam ‘Em vez de mexer seis vezes, mexe só duas, no máximo três’[1]. Mas os pedidos não eram aceitos pelo enfant terrible Matogrosso.

A trajetória de subversão de Madonna sempre contestou às normas morais da Igreja Católica. Em Like a Prayer de 1989, Madonna beijava um cristo representado por um homem negro, e dançava em frente de crucifixos em chamas, referindo-se dubiamente ao cristianismo e ao grupo supremacista branco Kux Klux Klan.  Já no ano seguinte, em 1990, o Papa João Paulo II solicitou que o show “Blond Ambition” fosse boicotado na Itália, o que resultou no cancelamento de uma das três apresentações. Além disso, a polícia de Toronto ameaçou prender a cantora pela sua imoralidade.

 O embate com a Madonna não era um acaso, mas pauta privilegiada daquele papado. A ideia de “ideologia de gênero”, fortemente disseminado pelo conservadorismo evangélico do Brasil contemporâneo, foi uma invenção levada a cabo pelo pontífice. O período de João Paulo II à frente da Igreja Católica também foi marcado pela supressão da teologia da libertação, especialmente na América Latina.

Mas foi só em 2006 que a Madonna goleou pela terceira vez, e já pôde pedir uma música no Fantástico. Em Confessions Tour, a cantora usava uma coroa de espinhos enquanto cantava Live to Tell pendurada em uma cruz espelhada. Para o Papa Bento XVI, tratava-se de um ato de blasfêmia. 

Mas se Cristo criticava os fariseus - uma elite simultaneamente política e religioso de seu tempo – por sua hipocrisia, a história parece se repetir infinitamente. Nas últimas semanas, vimos uma série de líderes políticos e religiosos brasileiros precisando prestar contas sobre suas presenças no show da Madonna na orla de Copacabana. As acrobacias para justificar a injustificável incoerência foram muitas.

Fábio Wajngarten foi o mais capcioso. Agarrando-se ao genocídio na Palestina, o advogado de Bolsonaro, postou foto de Madonna ao lado de Netanyahu, com a legenda “essa é só para quem acha que sabe de tudo, quando na verdade não sabe de nada": que segue o melhor estilo conspiracionista: uma explicação alternativa somada a arrogante superioridade moral. Vale lembrar que Wajngarten foi um dos personagens principais da CPI da COVID, tendo pedido de prisão feito por senadores por mentir à comissão.  Ele esteve a frente da SECOM durante o governo Bolsonaro é foi acusado de colaborar com a divulgação do chamado “tratamento precoce” (responsável pela falsa promessa de proteção à doença) e chegou, inclusive, a admitir que o governo Bolsonaro deixou a oferta de vacinas da Pfizer dois meses sem resposta.

O senador por Santa Catarina, Jorge Seif, foi a púlpito pedir desculpas por ter ido ao show da cantora. O primeiro nome que procurou ao falar, foi o de Damares Alves. Humildemente, pediu desculpas a todos que se sentiram ofendidos pela sua presença no show, pois os valores do show não corroboram com seus “valores judaico-cristãos”. Argumentou que estava desavisado do que aconteceria no show dos quarenta anos da carreira da Rainha do Pop. Arvorado em defesa da masculinidade, para afagar o coração do colega, o senador Cleitinho fez questão de pedir um aparte durante a fala do colega para dizer que este estava perdoado pelos seus erros, apelando para o às na manga do cristão “o único que foi perfeito aqui na Terra e ainda crucificaram ele, foi Jesus Cristo”. Seif já foi apelidado por Bolsonaro de 06, em referência aos cinco filhos do presidente – que insiste em não decorar os nomes da tão amada prole.

O próprio governador do Rio de Janeiro não conseguiu colher os louros do megaevento em seu próprio estado. Disse que saiu antes do final do show, quando as cenas eróticas começaram. O que significa que ele não saiu antes do final, mas com certeza logo no começo.

Mas, finalmente, o que conecta Madonna a Ney Matogrosso, para além das proximidades estéticas, e da importância das figuras para o conjunto de liberalizações sexuais do século XX, é o fascínio que desperta nos conversadores e nos protetores dos bons costumes. O magnetismo carismático e sensual de ambos comparava que a “carne é fraca” a torto e à direita. Há 50 anos, em 1974, o grupo Secos & Molhados fez uma apresentação histórica em Brasília. O jornal Correio Braziliense assim noticiou: “Milhares de pessoas, principalmente jovens, acorreram em massa para ver aquele que é, sem dúvida, o grupo de maior sucesso no momento no Brasil”. À época, a ditadura exigiu uma sessão prévia para ser avaliada pelos censores, que ocorreu à tarde, horas antes da apresentação para o grande público na mesma noite.

Acontece que naquela tarde, na apresentação prévia, não estavam na plateia apenas os censores, mas um conjunto de familiares e amigos convidados para ter acesso exclusivo ao show. Sem filas, sem tumulto e de forma gratuita, tomaram proveito particular e corrupto da prerrogativa dos censores em avaliarem as apresentações previamente. Ao mesmo tempo em que os ditadores performavam seu poder, demonstrando a forca do governo autoritário frente à liberdade da arte, eles sucumbiam à irreverência e sucesso escandaloso de Secos & Molhados e ao rebolado debochado de Matogrosso.

De Ney Matogrosso à Madonna, há cinquenta anos seguimos jorrando o leite mal na cara dos caretas.

*Rodolfo Godoi é sociólogo, autor e diretor do espetáculo @ubercapitalismo

 

[1] VAZ, Denise: Ney Matogrosso: Um cara meio estranho. Rio de Janeiro: Editora Rio Fundo,1992