Maior disputa societária atual no Brasil, o caso Eldorado Celulose é repleto de ensinamentos sobre duas questões cruciais: a função social da propriedade e a soberania nacional. Trata-se de um caso em que há risco concreto de prejuízos ao desenvolvimento do país.
Em linhas gerais, a Eldorado foi vendida pelo grupo dos irmãos Joesley e Wesley Batista (J&F Investimentos), num acordo firmado em etapas. Na primeira, houve compra de 49,41% das ações pela CA Investment (controlada pela estrangeira Paper Excellence). As etapas seguintes previam medidas para concretizar o negócio e transferir o controle acionário.
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O surgimento de divergências levou o caso à arbitragem, que decidiu em favor da CA Investment. A J&F judicializou a disputa, paralisando a conclusão do negócio. Desde então, a batalha judicial se avolumou e outras questões foram suscitadas, como as regras para aquisição de terras por estrangeiros, levantadas em ações sob análise no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4).
O cerne está num ponto aparentemente simples: quais as condições exigidas para a aquisição de terras por estrangeiros? A venda da Eldorado a uma estrangeira põe em risco a soberania nacional?
Há dois aspectos centrais a se analisar. O primeiro é o da função social da propriedade prevista na Constituição (artigos 5º, XXIII e 170º, III). Tal função legitima e valida o lucro e a propriedade privada dos bens de produção, mas sempre em obediência ao interesse geral. Esse princípio repercute em restrições ao direito de domínio da propriedade, como os elementos de controle sobre o território pelo Estado, pilar da soberania. A função social da propriedade, assim, também significa uma função política da propriedade.
O território é a extensão espacial da soberania do Estado. Como esse domínio constitui a própria soberania, quase todos os países têm algum tipo de controle sobre a compra de terras por estrangeiros. O objetivo é afastar o risco de reduzir a soberania caso grandes porções passem para mãos estrangeiras.
A questão é complexa. Se é verdade que aquisições em grande escala por estrangeiros podem levar à desnacionalização e desagregação territorial, afastando a função da propriedade dos interesses nacionais, também é certo que o capital, muitas vezes, necessita tanto da terra quanto do trabalho, gerando efeitos positivos como a geração de empregos, a garantia dos direitos trabalhistas ou a sustentabilidade ambiental.
Pela atual fluidez e complexidade internacional do capital, existem políticas de apropriação de terras associadas à economia doméstica, com o capital nacional participando desse processo. Isso afasta a abordagem simplória do recorte “brasileiros versus estrangeiros”, que cria um discurso contraditório entre a proibição à aquisição direta e o incentivo, inclusive estatal, ao controle estrangeiro indireto. Por isso, o Estado deve buscar, ao mesmo tempo, alcançar objetivos de política agrícola, controle do território e atendimento à função social da propriedade. O Estado é central para garantir a segurança jurídica e a atração de investimentos, sejam internos ou externos.
A Lei nº 5.709, de 1971, não proibiu a aquisição de terras por empresas estrangeiras, mas buscou ordenar a ocupação do território. A Constituição de 1988, por sua vez, determina (art. 190) que a aquisição ou arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira deve ser limitada e regulada por lei. Como a lei exigida não foi elaborada até hoje, segue em vigor a de nº 5.709/1971.
Esse marco é anterior à Lei das Sociedades por Ações (nº 6.404/1976), que modernizou a legislação empresarial e introduziu o conceito do poder de controle. A restrição à aquisição de terras foi sempre interpretada de acordo com a estruturação das empresas prevista na Lei das SAs. Significa dizer que a participação estrangeira minoritária, sem o poder de controle, não incorre nas limitações previstas na lei. É justamente o caso da Eldorado: não há poder de controle na fase atual do negócio pela estrangeira, portanto, não haveria que se falar em restrições.
Tanto é assim que o Incra exige a comprovação de maioria do capital social (poder de controle) para as autorizações para estrangeiros. O requisito se aplica a partir do limite de 100 módulos de exploração indefinida, quando passam a ser necessárias autorizações do Congresso Nacional e dos órgãos competentes, como o próprio Incra, justamente para evitar a obtenção de grandes porções de terras por estrangeiros e preservar a soberania territorial. No caso Eldorado, com a conclusão do negócio e a consequente transferência do controle acionário, a estrangeira teria que ou se desfazer das terras além desse limite ou solicitar autorização para a compra.
Ocorre que o Ministério Público Federal e o Incra opinaram pela nulidade integral do negócio. A prevalecer o novo entendimento, equivocado, toda e qualquer aquisição por estrangeiros requer autorização prévia. Não é preciso muito para perceber o efeito catastrófico para a economia, segurança jurídica e sociedade. Há uma miríade de projetos produtivos com investimentos estrangeiros na exploração de terras. Toda a cadeia dos setores do agronegócio, mineração e energia (eólicas), estratégicos para nosso desenvolvimento, será profundamente afetada, prejudicando trabalhadores e trabalhadoras rurais.
Tenho defendido, no lugar da nulidade, a adoção de parceria rural, que mantém a propriedade com brasileiros. Nessa modalidade, o empreendimento é comum, com a assunção de riscos e resultados compartilhados. Com um prazo razoável fixado, os contratos de arrendamento rural, aos quais também se aplicam as mesmas restrições das aquisições por estrangeiros, passam a ser contratos de parceria rural.
É uma solução relativamente simples, ágil, sem maiores custos judiciais para o Estado e que não ameaça a segurança jurídica e os projetos de desenvolvimento já existentes. Preserva o interesse público e a soberania territorial. Podemos agir com racionalidade e buscar saídas de ganha-ganha que beneficiem a todos.
Gilberto Bercovici é Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP