Mais de 80 tiros foram disparados contra Evaldo e sua família por militares do Exército Brasileiro. Precisamente, 257 disparos foram efetuados. A ação, ocorrida em abril de 2019, em Guadalupe, também vitimou Luciano, catador de recicláveis que tentou prestar socorro ao músico. Na noite do dia 18 de dezembro, o Superior Tribunal Militar finalizou o julgamento do caso. A conclusão de oito dos quinze ministros foi de que não houve crime contra a vida de Evaldo, e que o homicídio de Luciano teria sido culposo, quando não há intenção de matar. O resultado: redução da pena para apenas cerca de 3 anos de detenção, em regime aberto, sendo parte já prescrita.
Quais foram os fundamentos de uma decisão tão benéfica ao grupo de militares envolvido em um crime que chocou o país? Contrariando todos os laudos periciais, a tese vencedora sustentou que os militares agiram imaginando estar em legítima defesa quando realizaram a primeira abordagem a tiros contra o carro em que estava Evaldo e sua família, o que no direito chama-se de “ legítima defesa putativa”. Segundo essa tese, teria sido neste momento que o músico teria morrido - mesmo os laudos periciais indicando uma dinâmica totalmente antagônica a esta conclusão. Na sequência, uma segunda leva de tiros foram disparados contra o músico já morto, e neste segundo momento não haveria que se falar em crime - afinal, com o corpo já sem vida, este seria um crime impossível.
A Ministra Maria Elizabeth, que iniciou a sessão de ontem, precisou de três horas e meia para ler um minucioso voto em que descrevia o absurdo desta tese, além de explicitar o evidente caráter de violência racial na ação do grupamento militar. Ela é um dos poucos quadros civis de um tribunal composto majoritariamente por militares do alto comando das três Forças Armadas. Seu esforço foi em vão. Aparentemente, no Brasil, todo o argumento é válido quando se trata da não responsabilização de agentes de Estado.
O caso de Evaldo e Luciano relembra dois outros julgamentos paradigmáticos ocorridos recentemente no Rio de Janeiro. O primeiro é o de Johnatha Oliveira, filho de Ana Paula Oliveira, morto por tiros disparados por um policial lotado na Unidade de Polícia Pacificadora de Manguinhos. Os laudos periciais foram exaustivamente trabalhados e revisados pelo Projeto Mirante, uma iniciativa da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, do grupo de trabalho GENI, em parceria com diversas instituições. Mesmo diante da prova nítida da origem dos disparos que vitimaram Johnatha, o crime cometido pelo policial militar foi desclassificado para homicídio culposo pelo tribunal do juri. O recurso obtido nesta semana pela Defensoria Pública garantirá a realização de um novo julgamento para o caso.
Evaldo e Jonhatha são dois exemplos nítidos da dificuldade assombrosa que o sistema de justiça brasileiro enfrenta quando o assunto é condenar os agentes de Estado pelos crimes perpetrados. Vale de tudo. Vale inventar teses jurídicas, vale ir contra a prova dos autos. Mas quando o assunto é condenar meninos negros supostamente envolvidos em crimes, [1] aí esse mesmo sistema de justiça não precisa de muito - só precisa mesmo da palavra do policial que efetuou a prisão.
Era isso o que dizia a famosa Súmula 70, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. A Defensoria Pública do Rio foi responsável por conseguir, enfim, a revisão dessa súmula, que há décadas vinha encarcerando arbitrariamente jovens negros tendo como fundamento, apenas, a palavra do policial.
Dois pesos, duas medidas. É isso que se vê hoje no processo penal brasileiro, a depender de quem é o acusado. Se a revisão da súmula 70 pode, de fato, constituir um avanço para que atrocidades probatórias não sejam mais válidas na condenação em massa de jovens negros, os julgamentos das mortes de Evaldo, Luciano e Johnatha mostram que há, ainda, um longo caminho a percorrer quando o assunto é levar os agentes de estado para o banco dos réus.
*Fabiana da Silva é mestre em Educação e ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
*Guilherme Pimentel é advogado de Direitos Humanos e ex-ouvidor Geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
*Jackson Anastácio é assessor parlamentar e estudante de Sociologia.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.