A capital goianiense nunca esteve tão dividida e polarizado, mesmo que o seu conservadorismo político seja tão grande ao ponto de expelir a esquerda da disputa municipal. Oficialmente, a batalha pela prefeitura coloca no segundo turno o ex-deputado estadual Fred Rodrigues (PL) e o ex-deputado federal Sandro Mabel (UB). Na verdade, trata-se de uma rodada do tabuleiro, em que será decidido se Bolsonaro ou Caiado é que vai manter ou assumir, respectivamente, a liderança hegemônica na direita no Brasil.
Primeiramente, é preciso desconstruir a imagem de que o neofisiocrata Caiado é um estadista moderno. A percepção de que Bolsonaro é extrema-direita em relação ao Caiado, apontado como centro-direita, é uma falácia que se escora em fatos pontuais, em que o governador de Goiás, por ser médico, foi obrigado a defender sua profissão diante do negacionismo científico invertebrado de Bolsonaro. Mas, é claro que esse diferencial competitivo não apaga de sua biografia, o karma familiar marcada pelo monarquismo escravocrata e o republicanismo coronelista, que, volta e meia, ressurge do inconsciente coletivo para as manchetes de jornal, como no caso do suposto envolvimento do clã na chacina e queima de arquivo, envolvendo policiais goiana, em torno da morte do dissidente político Fábio Escobar em Anápolis. Para além disso, enquanto governador, seja no âmbito da micro ou macropolítica, o ronaldismo é implantando, aproveitando do resíduo inercial do caiadismo autoritário e maquiavélico em Goiás, mais temido do que amado, ou seja, artimanhas prático-discursivas ostensivas e subliminares de intimidação. Esse Estado de terror tem silenciado e (auto)censurado toda e qualquer oposição política nos demais poderes: legislativo, judiciário, MP e Imprensa. Além disso, tem sido responsável pelo aumento da letalidade policial para, pela explosão da violência no meio rural contra o movimento dos sem terra (MST) e incremento da violação de direitos humanos no sistema carcerário, conforme dados do Relatório de Violações dos Direitos Humanos do ano de 2023 do Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno.
Individualmente falando, Caiado não pode se furtar do papel com o qual se forjou legislador, justamente, na esteira da defesa dos terratenentes brasileiros, desde os tempos em que cofundou a UDR, sempre contrariando os direitos e as identidades quilombolas e indígenas, em seus anseios por reconhecimento de suas terras tradicionalmente ocupadas. Maior algoz da presidenta Dilma no Senado, Caiado só se tornou governador após ter se projetado como uma espécie de promotor do impedimento da petista, envolvimento afetado e grandiloquente, pois que, parecia projetar nela a imagem da também petista Thelma Gomez, com quem foi casado e se divorciou ainda no milênio passado. Essa relação contraditória, mas de suposta complementaridade contrastiva, que a luta pela redemocratização uniu, de certa forma, permite falar em uma espécie de caiado-petismo em Goiás, que tem anulado a consolidação do PT no interior do Estado, jamais tendo conseguido eleger um senador ou governador, o que reforça a tese da campanha de Fred, de que Mabel seria um falso direitista, por ter sido aliado e defensor de Dilma -, mas também de Temer, quando prestou irrelevantes serviços ao gabinete presidencial, só abandonando o barco após o aparecimento das gravações de Joesley Batista, naquele dia em que as “estruturas” do Palácio do Planalto foram abaladas. Ademais, a aliança com Caiado e Mabel tenta disfarçar um antagonismo que parecia irreconciliável, já que há 3 anos atrás, na condição de membro do MDB e presidente do sindicato patronal SESI, ele costumava andar com o adesivo "Caiado Nunca Mais", parodiando o movimento de direitos humanos contra os crimes de violência estatal cometidos pela Ditadura militar no Brasil, o que demonstra que Bolsonaro e Caiado, de certa forma, são farinha do mesmo saco, muito mais do que Lula e FHC também o erram, apesar das desavenças de irmãos filhos de Dom Paulo Arns.
Em segundo lugar, é preciso considerar que o ex-deputado ter sido cassado pelo STE, logo após ter homenageado Bolsonaro com título de cidadão goiano, sofrendo, segundo ele, possível perseguição política -, foi um evento que o fortaleceu politicamente, dando atenção midiática de deputado federal pra.um estadual, o que catalisou sua carreira em 8 anos pelo menos. Mesmo tendo sido contratado por lealdade corporativista para ser o mídia influencer da Assembleia pelo presidente da casa, Bruno Peixoto (UB), que é pressionado por Caiado para denegrir a capacidade administrativa de Fred, ele se apresenta como candidato antissistema, a maneira Bolsonaro. De fato, representa uma renovação relativa, pelo menos, geracional, tecnológica e metodológica (“o meio é a mensagem”) -, sua campanha não teve tempo de TV, dependendo, exclusivamente, de sua habilidade hipertextual em criar vídeos virais. Movido pelo velho neoliberalismo olavista da direita defensor da família, pátria e propriedade, com sua picardia ácida de stand up comedy tem mobilizado cidadãos, não somente nativos digitais, refratários ao loteamento de cargos da prefeitura para os vereadores, sempre em prejuízo da eficiência do serviço público, a reconhecer nele a figura de um Davi lutando bravamente contra o Golias. Também neoprotestante, apela para arquétipos bíblicos para camuflar não ter expertise comprovada de gestão como o milionário candidato Mabel, que de fato foi um empresário de sucesso no ramo das copiadas rosquinhas de coco, podendo até reivindicar o título de reinventor da roda. O comunicador ou agitador social Fred, por outro lado, como afirma seu conteúdo de sua “campanha ofensiva” -, ofensivo em um tom ridicularizante, desde o primeiro turno, contra todos os candidatos localizados acima dele nas pesquisas -, não tem envolvimento ainda em escândalos de corrupção como seu concorrente veterano, que, supostamente, tinha apelido (“biscoito”) na lista de propina via caixa 2 da Odebrecht, conforme observado em delação premiada da Lava Jato. Porém, não ter conseguido nem prestar contas para o TSE-GO no prazo de sua candidatura para vereador, torna necessário apelar para Paulo Guedes, assim como o fez Jair após o mico de não saber qual era o tripé da economia de mercado. Talvez, por isso, o ex-Ministro e alguns de seus ex-colaboradores estejam atuando como coaching do filho tido como prodígio (ou será pródigo?), mas que até a documentação dessa atual candidatura apresenta dúvidas sobre estado civil e escolaridade, sugerindo suspeita de falsidade ideológica.
Com uma proposta de ter um secretariado técnico, apesar de ainda não apresentar os possíveis nomes, Rodrigues parece ter um trunfo contra seus pontos fracos, capaz de neutralizar os pontos fortes de Mabel, que, certamente, existem. Isso apesar da sua topeirice no debate em procurar em hm labirinto de papéis com propostas quilométricas, contrapondo aos 11 mandamentos da pauta de Fred, na qual o relativa à militarização de escolas e maior poder letalidade e ostensividade da Guarda Muncipal, mostra realmente que seu "V" da vitória será um "L" deitado, para infelicidade do povo pobre, preto e periférico. O excesso de polidez forçada e pegajosa de Mabel em parecer do povo por um empresário que nunca pegou ônibus para saber como a comparação com camburão não é sensacionalismo, acaba tornando Rodrigues um candidato mais latino e sensual, sangue nos olhos, mesmo que seu charme bufanesco seja de galã canastrão de novela mexicana.
A inusitada virada de um candidato de extra direita que estava nos últimos lugares da pesquisa no primeiro turno é resultado da possibilidade democrática de inclusão e expressão, concedida pela internet, para o bem e para o mal (fake news, negacionismo e desinformação e antidemocracia), que permite nomes novos da classe popular ou não surgirem na arena pública sem apadrinhamentos políticos. Cabe aqui ressalvar que Fred não teria conseguido se impulsionar para o cargo de deputado estadual em 2022 só com o auxílio dos algoritmos. Se não fosse o prestígio conferido pelo canal estatal TBC -, que, passou por uma reformulação editorial no governo Caiado, o que levou a ser acusado de fazer apologia ao bolsonarismo explícito -, o ainda não deputado, mas desde sempre eterno convidado do picaresco programa TBC Debate, não teria se tornado o candidato ao legislativo goiano, como o mais votado na capital. Em igual medida, sua popularidade nas redes, assim como a do polesmista Gustavo Gayer -, que cedeu a primazia da vaga para ser o postulante à prefeitura -, também contribuíram para elevar a audiência desse veículo do governo na internet. Nesse sentido, pode se dizer que Caiado, que participou da homenagem na Alego de Rodrigues ao Jair em 2023, quando aquele entregou, ao famigerado e mítico ex-presidente, o título de cidadão goiano, por inércia, ainda é, na verdade, o grande fiador da ascensão meteórica desse jovem político. Se Bolsonaro tem seu avatar na campanha de Fred, Trump também o tem, o que incrementa com ares internacionais de banda cover a campanha do PL. Isso porque, o vice de Rodrigues é o empresário do ramo da construção civil Leonardo Rizzo (Novo), cujo posicionamento de imagem como político gestor nacionalista, remete ao ex-presidente norte-americano. Essa liderança tem também sua Trump Tower, que, no caso, de Leo, é o Rizzo Plaza, um prédio, onde seu proprietário, um dos incorporadores do capital rentista de Goiás, não economizou no quesito óculos de sol e que desde da década de 90 tinha uma grande e pululante bandeira do Brasil no seu terraço.
Carregando as externalidades positivas e negativas, o ativo e o passivo das biografias e dos legados de seus padrinhos políticos, Fred e Sandro, na verdade, sabem que estão prestes a iniciar uma disputa que vai se desdobrar em outras, em novas proporções e entre aliados maiores, na esfera estadual e presidencial em 2026 e, que suas vitórias ou derrotas, representarão um eco e reflexo do que poderá ocorrer no cenário nacional. No entanto, essa, pelo menos, momentânea cisão precoce entre correntes tão próximas (monarquismo coronelista x republicanismo golpista?), apesar de ter prejudicado o PT em Goiás, que ficou sem palanque para o segundo turno, se consolidada, pode favorecer o projeto de continuidade de Lula (lulopsdbismo ou psbismo, a partir de sua aliança com o ex-tucano Alckmin), já que essa conjuntura, certamente, criará empecilhos para que esses grupos de nova e velha direita possam ter clima político para seguirem uníssonos em seu antipetismo, num futuro eventual e, quase inevitável, segundo turno entre direita e esquerda pela presidência. É claro, que há a possibilidade de que passado o furor das eleições, a percepção dos denominadores comuns voltem a ser maiores, do que as divergências, mas por enquanto, Goiânia segue mostrado para o Brasil, que é a capital do sertanejo e da direita e seus 50 tons de cinzas. Afinal, seja o capitalismo do agronegócio, da indústria, do rentismo e da internet, com seus ganhos passivos com monetizações de cortes, o que unifica a direita e extrema direita, acima de todos e de tudo, é o uso populista (autoritário) da política para defesa do capital.
*Frederico Assis Brasil é professor Urbanidade na UFSJ, com doutorado no Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas da UFRJ e idealizador do Oposição com Liderança.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.