Meu nome é Ernesto Guevara José de Carvalho, não é o nome que consta na minha certidão de nascimento e isso não é um mero detalhe. Na verdade, ilustra o momento politico que vim ao mundo, e de quem sou filho.
Nasci em janeiro de 1968, ano do AI5 e sou filho de Devanir José de Carvalho, codinome Comandante Henrique, líder do Movimento Revolucionário Tiradentes, o MRT, organização guerrilheira que enfrentou a tirania dos governos militares.
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Cheguei ao Chile de Allende na metade do ano de 1971, com minha mãe Dina e meu irmão Carlos.
Saímos do Brasil numa operação realizada pelo que restava do movimento que meu pai liderava. Dina havia saído da prisão alguns dias antes da nossa partida, eu não me lembro absolutamente de nada antes da nossa chegada a Santiago, talvez alguns flashes da viagem, sei que dormimos em Foz de Iguaçu-PR e no dia seguinte entramos num ônibus que nos levou ao Chile, passamos o dia na rodoviária sem comer porque não tínhamos dinheiro.
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Ao chegarmos em Santiago, fomos recebidos pelos meus tios Daniel, Joel, Jairo e Derly José de Carvalho, todos guerrilheiros que estiveram presos no presidio Tiradentes desde 1969 e foram libertados na troca de um embaixador suíço Giovanni Bucher, em 1970, ação promovida, entre outros grupos, pela REDE, um agrupamento de movimentos revolucionários entre eles o MRT.
Todos os setenta presos políticos trocados pelo diplomata foram banidos do Brasil e receberam asilo do governo Allende, por essa razão nós seguimos para lá.
O reencontro com meus tios e avós que também estavam em Santiago foi talvez meu segundo nascimento, meu pai havia sido assassinado em abril de 1971, e minha mãe Dina presa uma semana depois.
Durante os 30 dias em que ela esteve nas mãos da ditadura militar na sede da OBAN em São Paulo, dormi entre meus avós, Ely e Esther.
Portanto reencontrá-los no Chile de Allende foi como emergir de um mergulho forçado nas profundezas de águas turvas, onde já não achava nem meu pai e nem minha mãe, aos 3 anos de idade.
Pela primeira vez depois de muito tempo reencontrei também o olhar mais sereno que toda mãe deve ter ao cruzar com os olhos de seus filhos. O semblante destruído de minha mãe e de meu irmão Carlos que, à época, tinha 7 anos aos poucos foi se amenizando, mas no fundo eu sabia que uma insuportável dor nos consumia.
Foi o Chile de Allende, o reencontro com meus avós e tios e minha tia Helena, e a solidariedade do povo chileno que nos ajudaram a cicatrizar as feridas abertas que se transformaram em cicatrizes eternas, que hoje as carrego com orgulho, responsabilidade e firmeza ideológica.
Nossa vida no Chile ganhou ares de normalidade em pouco tempo. Apesar da tristeza, as dores das torturas e a frustração pela perda do irmão, meus tios passaram a trabalhar e a militar na Unidade Popular do Chile.
Encontros, reuniões, militância em atos públicos em defesa do governo Allende, que já recebia um prenúncio do que seriam os anos seguintes, deram rotina, responsabilidades e sentimento de pertencimento aos meus tios, pertencimento à luta pela independência da América Latina, a pátria grande.
Isso os motivou, lhes deu estrutura pra seguirem em frente, e contagiou os filhos e sobrinhos, inclusive a mim. Inconscientemente, ver meus tios entusiasmados com a possibilidade de um mundo mais justo e fraterno, comprometidos com a causa, militando, exercitando a intelectualidade e a atividade politica, dentro de um país que havia eleito pelo voto direto um governante comprometido com a população mais vulnerável, me formou, como homem, como militante das causas sociais e fundamentalmente como um cidadão latino-americano.
Além de me preparar para o que viria pela frente. Em 11 de setembro de 1973 estávamos na fila do café, naquele momento o Governo Allende sofria com a sabotagem da extrema direita, empresários aliados aos interesses dos norte americanos promoviam o desabastecimento das cidades, com locautes, greves de movimentos patronais, e os movimentos de direita financiados pela CIA inflavam as ruas.
A elite, a classe conservadora se preparava para o golpe de estado, que se consumou nesse fatídico dia. Da fila do café segurando a mão da minha mãe, eu vi subirem os veículos militares pelas ruas, tanques, soldados correndo, helicópteros sobrevoando a grande Santiago, lembro da minha mãe dizendo: “eles deram o Golpe”.
Voltamos pra casa, passando pelos veículos militares, tropas nas ruas, gritos, o pânico estava instalado. Inclusive entre nós. Passamos alguns dias escondidos dentro de casa, quando recebemos um recado. Venham pra embaixada da Argentina.
O lugar para o qual deveríamos ir ficava em Santiago mesmo, numa avenida larga dividida por um canteiro ao meio, cheia de árvores.
Um imóvel de cor clara, que ocupava todo o quarteirão, de mais ou menos 60 metros de frente, com dois portões, um de entrada e outro de saída, que tinham por volta de 5 metros de largura cada um e que ficavam nas extremidades da parte da frente do casebre que possuía janelas enormes, sempre tampadas por lindas e longas cortinas.
Na frente, dividindo o imóvel com os portões, havia um jardim enorme muito bem cuidado em que podíamos ver, pelas grades que o cercavam, aquele pedaço da Argentina no meio da Santiago Chilena. Era ali que deveríamos entrar, a questão “era”.
O imóvel estava cercado e isolado pelo exército chileno comandado pelo general traidor e golpista Augusto Pinochet. Minha mãe, eu, meu irmão Carlos e um companheiro chamado Caio Venâncio decidimos entrar, não tínhamos escolha.
Ou entrávamos ou seríamos presos e encaminhados ao Estádio Nacional, destino de milhares de chilenos e refugiados que a República socialista chilena tinha asilado em seu território. Muitos, milhares saíram de lá sem vida.
Outros nunca tiveram seus restos mortais encontrados. Decidimos entrar. O plano era irmos com as roupas do corpo como se fôssemos moradores a passeio. Me despedi dos meus brinquedos, me lembro de uma carretilha de madeira feita artesanalmente pelo Caio, coloquei dentro de um saco cinza de lona e deixei atrás da porta, daquela que tinha sido minha casa e nos últimos dias um aparelho de refugiados em fuga de mais uma ditadura.
Andávamos de mãos dadas pela avenida, sempre pela via que estava liberada, quando chegamos na altura do portão, cumprimos o plano e fomos em direção a ele.
Os sentinelas que vigiavam para que ninguém entrasse ou saísse, 4 ou 5 jovens milicos, não se deram conta que nos aproximávamos do portão, quando estávamos cruzando a linha de “chegada” um deles gritou: Señora!!!
Cumprindo o combinado, fingimos que não ouvimos e aceleramos o passo. Nesse momento um dos milicos agarra o braço da minha mãe, mas, Caio havia recebido treinamento de guerrilha urbana, e se posicionava a poucos metros da gente.
Foi o tempo e a distância exata para desferir um golpe preciso de artes marciais no milico que segurava minha mãe, e, também cumprindo o combinado, passamos a correr para dentro da embaixada. Aquele jardim bem cuidado virou uma passarela pra sobrevida de uma jovem mulher ex-presa politica, viúva aos 25 anos, com seus dois filhos órfãos do pai, assassinado por outra ditadura.
Ao subir a rampa para a porta, já dentro do território diplomático argentino, portanto local que os militares chilenos não poderiam entrar, me lembro de estar agarrado à mão direita de minha mãe, meu irmão na mão esquerda e nossos olhos em direção à porta de entrada, naquele momento lotada de brasileiros refugiados da ditadura militar brasileira assim como nós, e agora também refugiados da ditadura chilena, que gritavam desesperados nos incentivando para que conseguíssemos entrar.
Entramos, mas faltava o Caio. Em menos de 15 minutos, a porta se abriu dentro daquele salão enorme lotado de gente, e surgiu o responsável pela nossa entrada naquele que seria o nosso último destino no Chile ex Allende.
Todo ensanguentado, teve os testículos furados pela baioneta dos milicos chilenos, mas mesmo ferido Caio conseguiu entrar. Dentro da embaixada, entre os refugiados havia vários médicos, uma UTI improvisada salvou a vida desse camarada.
Assim como outras pessoas que estiveram com a gente pelas diversas moradas no exilio, nunca mais o vi, soube que foi pra Dinamarca. Obrigado, Caio. Depois de alguns meses, a ONU providenciou a nossa saída da embaixada e do Chile.
Pelas janelas enormes víamos os ônibus chegando e partindo com pessoas que estavam nas primeiras listas. Nossa hora chegou, e partimos rumo a Argentina onde ficamos por quase um ano, e depois Europa, Lisboa, nosso destino no velho continente. Passamos por vários países quase sempre na mesma intensidade.
O momento mais duro foi na Argentina, quando dois dos meus tios desapareceram, Daniel e Joel José de Carvalho capturados pela Condor, uma operação assassina de cooperação entre as ditaduras do cone sul. Hoje constam na lista oficial dos desaparecidos políticos do Brasil.
Nunca foi fácil, nunca foi normal, nunca foi indolor, mas o Chile de Allende tem um grande significado pra mim, especialmente pra mim. Renasci, vi minha mãe retomar seu doce olhar, foi lá que vi minha mãe voltar a sorrir, meus tios, meu irmão, meus avós, juntos, embalados pela esperança que o Chile de Allende trazia, que um outro mundo sim era possível.
Há 50 anos acabou, em 11 de Setembro de 1973, golpearam a democracia, mataram Allende. Mais uma flor que se foi, mas não mataram a primavera, ela sempre chega!
Obrigado ao povo Chileno por essa experiência de um governo popular, por nos fazer sonhar, por nos inspirar e por nos acolher enquanto foi possível. Allende presente e todas as vítimas da ditadura chilena. Presente! Até sempre, até a vitória.