Em sua casa em San Francisco, na Califórnia, a escritora chilena Isabel Allende falou à AFP sobre seu metódico processo de escrita, sua visão para o mundo pós-pandemia e os protestos raciais nos EUA.
Na entrevista, Allende escritora chilena Isabel Allende diz que a pandemia expõe as desigualdades que seguirão provocando protestos nos Estados Unidos e no mundo. A autora de "A casa dos espíritos" publicará em novembro uma não-ficção sobre o feminismo chamada "O que queremos as mulheres" é disciplinada e tem uma tradição: todo 8 de janeiro começa a escrever um texto novo. Mas esse ano, com a pandemia, foi um pouco diferente.
"A pandemia, o isolamento, o medo do vírus, os protestos que ocorrem nos deixam bloqueados. Não é fácil. Me atingem, mas também sou disciplinada. A metade do trabalho é sentar-se em frente ao computador a mesma hora. Veja, pode ser que não sirva para nada, mas isso não importa. É assim que se fazem livros. Aos poucos e com paciência", diz a escritora sobre seu método.
Sobre como a pandemia está afetando suas obras, Allende diz acreditar que o momento "vai produzir uma onda, uma avalanche de nova interpretação da realidade. Não apenas na arte, mas na filosofia, na história, em tudo. Tudo será reinterpretado", declarou. "Mas, no meu caso, eu preciso de tempo e de distância para ver as coisas. Poderia ter escrito "A casa dos espíritos" depois do golpe militar no Chile, em 1973, mas demorei mais de oito anos porque precisava de tempo para digerir o que havia acontecido, para poder ver com distância, com ironia. E acho que será assim com o que acontece agora".
"A pandemia tem me ensinado a soltar as coisas, a dar conta do pouco de que preciso. Não preciso comprar, não preciso de mais roupas, não necessito ir a nenhum lugar, viajar. Me parece que já tenho muito. Olho ao meu redor e me pergunto para que tudo isso. Por que preciso de mais de dois pratos? Depois, me dei conta de quem são os verdadeiros amigos e das pessoas com quem quero estar."
Quando perguntada sobre os aprendizados na pandemia, ela diz acreditar "que ela nos está ensinando prioridades e nos mostrando a realidade. A realidade de desigualdade. De como há pessoas que passam a pandemia em um iate no Caribe, e outras que não têm o que comer".
"Também nos ensinou que somos uma única família.O que acontece com um ser humano em Wuhan, acontece com o planeta, acontece com todos. Não existe essa ideia tribal de que estamos separados do grupo e que podemos defender o grupo. Não há muros, não há paredes que possam nos separar', filosofa a escritora.
Allende acredita que há um futuro."Os criadores, os artistas, os cientistas, todos os jovens, muitíssimas mulheres estão pleiteando uma nova realidade. Não querem voltar ao que era normal. Estão pleiteando o mundo que queremos, e esta é a pergunta mais importante do momento. O sonho de um mundo diferente: é para onde temos que ir".
Perguntada sobre o que haveria de diferente neste novo mundo, Isabel Allende cravou: "Um novo mundo precisa do fim do patriarcado, do fim desses machos brutos que dirigem tudo. Uma humanidade em que o comando do planeta é dividido igualmente entre homens e mulheres. A reação masculina em face de uma emergência, uma crise, uma ameaça, é fugir ou combater. A das mulheres é fechar um círculo, colocar as crianças no meio e ver como o grupo resolve a situação", diz ela. Para a escritora, "as mulheres têm uma maneira democrática, inclusiva e circular de resolver problemas e enfrentar ameaças. Os homens não. Por isso, a direção do mundo tem que dar o mesmo peso aos valores masculinos e femininos. Que não seja a violência, mas a solidariedade, a compaixão, a ilusão."
"Esse é o mundo que queremos, um mundo em que haja respeito pela natureza e pelas outras espécies. Os jovens vão ter que salvar o planeta, se é que ele pode ser salvo. Que eles tragam uma solução positiva", diz a chilena.
Sobre os EUA, Allende diz: "As manifestações no Chile começaram em outubro do ano passado. Eram contra uma desigualdade tremenda. Nos EUA, as manifestações são pela questão racial, mas isso está diretamente relacionado à pobreza. Quem são os mais pobres nos EUA? Quem são os que não têm seguro saúde, emprego, os que mais sofrem com a brutalidade policial, a maioria entre os encarcerados? Os afro-americanos. Acredito que essas manifestações vão brotar em toda parte. Agora virá uma crise econômica global, que vai produzir mais desemprego, mais pobreza e, portanto, mais violência. Vão haver protestos em massa. E eles não serão resolvidos com tiros, nem com gás lacrimogêneo. Eles serão resolvidos quando as causas forem resolvidas. Elas são profundas e vêm desde os tempos da escravidão", disse a escritora.