A ideia é tão boa quanto justa: criar uma espécie de encontro nacional dos desaparecidos políticos brasileiros. Mas quem teve ideia tão brilhante? É aí que começa o mais recente livro do elogiado autor de “K - relato de uma busca”, Bernardo Kucinski, ou tão somente B. Kucinski. “Congresso dos desaparecidos”, que acaba de chegar às livrarias em edição da Alameda, promete entrar para a história da literatura dos anos de chumbo, e principalmente, para a história da recente literatura de nosso país.
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Em uma visita nostálgica à Praça da República, centro da cidade de São Paulo, um homem acaba encontrando um velho amigo de luta, o Rodriguez. Sentados em um dos bancos da grande praça tão maltratada pelo poder público, Japa (o narrador) e Rodriguez conversam sobre uma vida em comum: a vida de quem participou da luta armada nos anos de chumbo no Brasil. Rodriguez, um verdadeiro intelectual (anarquista), com sólida formação em Filosofia (como autodidata) e muito conhecimento de Mitologia, vai tentando explicar ao simplório (ou generoso) amigo Japa (leninista) os motivos da luta, assim como os motivos do fim trágico da mesma luta. Sobre a luta armada, diz Rodriguez:
“Não foi uma escolha fundada numa racionalidade política, nem mesmo foi uma escolha (...), foi uma imposição dos tempos, quase um destino”.
O mesmo Rodriguez conclui seu raciocínio, fustigado pelo companheiro Japa:
“E nós, eu indaguei do Rodriguez, nós que não tínhamos um pingo de religiosidade, vistos de hoje, o que você acha que nos moveu? A razão revolucionária, Rodriguez respondeu de pronto, fomos compelidos pela razão revolucionária! Eu ironizei: então havia uma racionalidade, antes você disse que não havia, como é que ficamos?”.
E os dois chegam a uma conclusão mais importante que diálogos explicativos, embora estes não cessem de existir ao longo do romance fantástico de Kucinski: é preciso dar voz aos desaparecidos políticos.
Mas que vem a ser um desaparecido político? É ainda Rodriguez, sábio tagarela, quem dá a letra, dialogando com Japa:
“Podiam ter permitido a meus pais um enterro decente, porém decidiram me desaparecer. Nem vi para onde me levaram. E você, perguntei ao Rodriguez, para onde te levaram? Perdi a conta de quantas vezes me enterraram e desenterraram, ele disse, por fim me despejaram na vala de Perus, misturado com outros, e ficou impossível me identificar. Agora é que não vão mesmo, eu disse, a Comissão da Verdade já acabou. As famílias tinham que protestar, disse Rodriguez. Mais do que protestaram? As famílias se cansam, eu retruquei, e já se passou tempo demais”.
Mais ou menos à maneira de um Rosário Fusco, um J.J. Veiga ou um Murilo Rubião, B. Kucinski ousa entrar na seara do fantástico a fim de dar a saber a todos o absurdo da realidade de um desaparecido político. E é por meio de homens e mulheres mortos que vamos caminhando página após página de “O congresso dos desaparecidos”, descobrindo nomes que decidem, finalmente, protestar, deixar, ironicamente, de ser invisíveis (historicamente). Japa e Rodriguez acordam que é necessário criar um evento em que todos os desaparecidos políticos possam, se assim o quiserem, se manifestar publicamente. E cravam lugar e data:
“O primeiro Encontro Nacional dos Desaparecidos Políticos será aberto na noite do primeiro de maio, na Catedral da Sé.”
Do diálogo entre o narrador e Rodriguez nascem não só elucidações consistentes, como frases de beleza singular, tal qual “é como se o tempo também não tivesse para onde ir”, afirmação de Rodriguez, explicando seu tempo de sobra depois de morto. Mas o livro de Kucinski ganha uma força sobre-humana quando surge a figura mítica de Osvaldão, líder e herói (abatido) da guerrilha do Araguaia. O negro alto e robusto tem papel decisivo no primeiro congresso (Rodriguez e Japa acertaram que o primeiro congresso trataria do método de desaparecimento e da importância própria do congresso, e acertaram ainda que haveria mais congressos, com objetivos mais práticos, no futuro), com uma longa fala muito esperada e muito festejada pelos presentes. Osvaldão conta a história do Araguaia quase que inteira, focando sobretudo nos motivos da guerrilha e na forma como os guerrilheiros foram fuzilados e desaparecidos, ele incluso.
Outro momento de extrema importância no primeiro encontro dos desaparecidos, na Catedral da Sé, é o da fala de um líder índígena. Aliás, Kucinski aproveita o acontecimento para mandar recados a toda a população brasileira, a respeito de graves problemas sociais de nosso país. Indígenas, negros, pobres (o pedreiro Amarildo, desaparecido no Rio de Janeiro, aparece em uma das noites do congresso), mulheres ganham voz no potente romance de um autor que viveu de perto o drama de perder a irmã para a ditadura brasileira, ela, a irmã, também uma desaparecida política. Segue um trecho da fala do líder indigena:
“Meu nome de batismo é Joseph e meu nome de guerra é Sepé Tiaraju, que significa Facho de Luz. Fui salvo pelo povo guarani depois que meu próprio povo foi massacrado pelos colonizadores. Fui criado para ser pajé, mas meu espírito guerreiro falou mais forte e me tornei morubixaba e chefe dos guerreiros dos Sete Povos das Missões. (...) Enfrentei três mil e setecentos soldados portugueses e espanhóis. Tenho as mãos e o cocar tintos de sangue porque jamais me curvei à vassalagem. Agora, como fazem com Tiradentes, querem se apoderar da minha luta e da minha memória. Dizem que subi aos céus, porque meu corpo nunca foi encontrado, e querem até me canonizar. Mentira. Meu corpo não foi encontrado porque deceparam minha cabeça e queimaram meus despojos. Fui morto covardemente, com um tiro de arcabuz, numa noite de lua cheia, 7 de fevereiro de 1756. (...) Não sou santo nem milagreiro, não pertenço à Igreja, não pertenço aos colonizadores, pertenço ao povo guarani”.
“O congresso dos desaparecidos”, entretanto, seria mais “feliz” se não trouxesse tantas gralhas. A quantidade de erros de digitação é tão grande que chega a constranger o leitor. O livro parece ter sido lançado com alguma pressa. Imperdoável para qualquer autor, mas sobretudo para um autor do calibre de Kucinski. A capa, mole demais, também parece um artefato que resultou de alguma precipitação.
Com uma ideia tão original e um texto tão bem escrito, além de tema importante e muito necessário em tempos de neofascismo, penso que o livro de Kucinski merecia uma edição da mais alta qualidade, como a que tiveram seus livros lançados pela CosacNaify e Companhia das Letras.
*Henrique Wagner é poeta e crítico literário. Autor de As costelas de Michelângelo.