No dia 16 de março de 2023 a primeira-ministra Elisabeth Borne anunciou o artigo 49.3 para aprovar a reforma da previdência na França, depois de semanas de discussão e de manifestações contrárias por toda a França. No dia anterior, as notícias davam conta de que a reforma, impopular e rejeitada por 68% dos franceses em pesquisa veiculada em 15 de março, pela BMFTV, OpinionEnDirect, não teria votos suficientes para sua aprovação no parlamento.
A solução encontrada pelo governo foi acionar o artigo 49.3 da Constituição Francesa, que permite a aprovação sem passar por votação no parlamento. Estrangeira morando na França há três anos – e um tanto perplexa com a opção por impor uma reforma tão impopular, em um momento tão delicado no que se refere à credibilidade da democracia em todo o mundo – busquei compreender os fundamentos do artigo 49.3.
Entendi que ele foi incluído à Constituição Francesa em 1958 com a justificativa de que o executivo não poderia ficar refém do parlamento para questões fundamentais para o funcionamento do governo. Artigo sempre controverso, que pode ser “censurado” por uma moção votada pelo parlamento na sequência de sua utilização. Apesar das duas moções de censura propostas, nenhuma alcançou maioria para barrar o uso do artigo pelo governo. O Governo não tem maioria na assembleia, mas ao mesmo tempo, a composição atual não consegue formar maioria devido às diferentes posições que ocupam cadeiras no parlamento atualmente, especialmente no que se refere à esquerda e à extrema direita.
A situação é reflexo das eleições de abril de 2022. Três candidatos concorreram com chances de chegar ao segundo turno, com o seguinte resultado em primeiro turno: Jean-Luc MÉLENCHON, 21,95% (esquerda); Marine LE PEN com 23,15% (extrema direita) e Emmanuel MACRON com 27,85% (centro). Num segundo turno tenso, parte da esquerda, ainda que bastante insatisfeita com o programa de governo de Emmanuel Macron, compareceu com o voto de blocagem para impedir a eleição da candidata da extrema direita. Macron encampou, assim, o candidato contra o extremismo, em favor da democracia. Foi eleito em segundo turno com 58,55% dos votos.
Nesse cenário, parece claro que a utilização do artigo 49.3 não se justifica para a aprovação de uma reforma impopular que vem sendo discutida e rejeitada na França desde há, pelo menos, 30 anos. Embates os mais variados – e não vou entrar no mérito dos pontos contrários ou de defesa da reforma: aqui quero falar sobre democracia, manifestações populares legítimas e atos ilegítimos de tentativa de golpe. Gostaria de nomear os fatos, algo que tenho considerado da maior importância para fazermos frente aos ataques à regimes democráticos em várias democracias, mais ou menos consolidadas, ao redor do mundo.
Repressão às manifestações
Tendo o governo mobilizado o artigo 49.3 no dia 16 de março de 2023, seguido de manifestações contundentes em toda França – com destaque para a greve dos coletores de lixo na capital, Paris – apenas em 22 de março de 2023 o presidente veio à público se pronunciar sobre a reforma, por meio de uma entrevista ao canal LCI. Dentre suas declarações, comparou o que chamou de violência empregada nas mobilizações que se sucederam à aprovação à força da reforma da previdência aos atos extremistas que aconteceram no Brasil em 8 de janeiro de 2023, e no Capitólio, em 06/01/21.
Bom. Vamos aos fatos. Os atos ocorridos em 8 de janeiro no Brasil foram orquestrados por grupos extremistas que não reconhecem a legitimidade da eleição presidencial que, em 31 de outubro de 2022, elegeu Luís Inácio Lula da Silva como presidente do Brasil, impondo derrota ao extremista Jair Bolsonaro. Grupos assumidamente golpistas, que desde a eleição de Lula acampavam em frente à quartéis militares por todo Brasil, pedindo intervenção militar, inflamados pelos sucessivos discursos golpistas do então presidente, que nunca se furtou a desacreditar as instituições da democracia brasileira – seja o processo eleitoral, colocando em questão supostas fraudes relacionadas à urna eletrônica, comprovadamente segura e reconhecida por várias democracias do mundo como um sistema seguro e eficiente; seja as instituições jurídicas, na figura do STF e na calunia à um de seus ministros, então presidente do STE, Alexandre Moraes. Essa é apenas uma breve lembrança de um processo bem documentado pela imprensa francesa, e acompanhado pelo próprio presidente Emmanuel Macron, que sempre se pronunciou em favor da democracia no Brasil.
Vemos, inequivocamente, que os atos golpistas e violentos de depredação do patrimônio público brasileiro, atacando a sede dos três poderes em Brasília, esteve o tempo todo alicerçado no golpismo alimentado por Jair Bolsonaro, um assumido inimigo da democracia. Por isso me causou espanto a declaração de Emmanuel Macron ao propor uma comparação entre os atos golpistas de 8 de janeiro, os atos golpistas ocorridos nos EUA em 2021 e a virulência das manifestações contra a reforma da previdência na França.
Essas manifestações, organizadas por diversos seguimentos de trabalhadoras e trabalhadores franceses que se colocam contra os termos dessa reforma, vêm, de maneira legítima, ocupando as ruas do país e buscando se fazer ouvir, o que, como sabemos, é parte do jogo político que se joga em democracias que funcionam e das quais a França é exemplo para o mundo: um país conhecido e admirado pela sua capacidade de mobilização e combate, um farol para a combalida democracia nesses difíceis anos do começo do século XXI.
O governo de Emmanuel Macron utilizou um artigo controverso para passar à força uma reforma impopular e sem aprovação da maioria dos franceses – o que fica explícito no fato de que não teria maioria na Assembleia, que se negou a votar contra a vontade da população.
Fortalecimento da extrema direita
A utilização do artigo 49.3 me fez lembrar uma passagem do livro Como as Democracias Morrem, em que os autores, Steven Levisky e Daniel Ziblatt falam, corretamente, que a democracia, com regras escritas e lei bem documentadas, é feita também das regras tácitas. Para explicar, recorrem à metáfora do basquete jogado nas quadras populares, que não é regido pelas regras da NBA (na tradução brasileira foi exemplificado pela pelada, um jogo de futebol popular em campos de várzea, de onde saem os grandes jogadores de futebol do mundo). Nesses jogos, as regras tácitas são compartilhadas pelos participantes. A gente sabe, por exemplo, que não vale dedo no olho para impedir o adversário que, na marca do gol, vai nos impor a derrota naquela partida.
O que se vê na França é a quebra das regras tácitas. Exatamente o que a extrema direita usa como artefato para corroer a democracia por dentro das instituições democráticas (e agora eu faço referência aos estudos de Adam Przeworski, em seu “Crises da Democracia).
Passar à força uma reforma que não tem consenso popular e deslegitimar os cidadãos que se manifestam contra é um dedo no olho da democracia. Pior é comparar as manifestações legítimas contra a reforma – a última pesquisa, veiculada em 15/04/23, pela BMFTV, OpinionEnDirect, mostra que 66% da população francesa apoia as manifestações - com atos golpistas de extremistas, confundindo assim os termos nos quais está colocada a luta tão dura pela democracia hoje no mundo.
A consequência concreta para as instituições democráticas na França tem sido uma descrença cada vez maior por parte dos cidadãos e cidadãs – o pronunciamento do presidente à nação sobre o tema, que aconteceu na última segunda-feira, 17/04/23, foi seguida de panelaço em frente às prefeituras nas cidades francesas (já vimos esse filme). Por outro lado, a repressão policial cresce de maneira injustificável, na mesma medida em que as intenções de voto para a candidata da extrema direita, como mostra a sondagem de 05/04/23, na qual a candidata obteria o primeiro lugar no primeiro turno da eleição presidencial.
É inadmissível ser eleito para fazer blocagem contra a extrema direita e usar suas armas contra o povo. O que aconteceu no Brasil em 8 de janeiro de 2023 não guarda nenhuma semelhança com o que acontece na França atualmente. A mobilização nacional de cidadãs e cidadãos franceses diz não aos termos da reforma da previdência imposta pelo governo de Emmanuel Macron, e sim ao debate público sobre aquilo que lhes afeta. É preciso nomear as coisas pelo que elas são, o que me parece fundamental na nossa luta para derrotar o extremismo e defender em bases mais sólidas a democracia.
*Kellen Alves Gutierres, doutora em ciências sociais pela UNICAMP e professora visitante na Universidade Lyon 3