As leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2 são relevantes conquistas da sociedade brasileira, fruto de amplas e generosas mobilizações e conceituações, não somente do campo das artes e da cultura, como da sociedade brasileira, tanto que foram aprovadas de forma quase consensual no Congresso do país. O significado dessas leis extrapola o próprio efeito imediato delas e representa um efetivo reconhecimento do papel da cultura e das artes no desenvolvimento e no processo civilizatório nacional. As legislações asseguram recursos substanciais a serem aplicados diretamente na cultura e de forma descentralizada, bem como significam grandes passos na efetivação do Sistema Nacional de Cultura. Daí a necessidade de essas leis serem implementadas com agilidade, eficiência e eficácia, pois quanto melhor e mais ágil for a implantação, mais duradouros e consistentes serão os resultados.
Para a boa aplicação das leis há que entender a semente que as antecedeu, a Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc. Aprovada logo no início da pandemia de Covid, de forma ágil, em processo de consenso progressivo e com ampla participação popular, a Lei Aldir Blanc é um marco na história das políticas públicas de cultura, aplicando recursos substanciais (R$ 3 bilhões) e de forma descentralizada em todas as unidades da federação (todos os 26 estados mais o Distrito Federal) e 4.775 municípios (75% do total do país). Isso na circunstância de um governo declaradamente inimigo das artes e da cultura e em contexto de pandemia aguda. O impulso de postos de trabalho na cadeia produtiva da cultura, entre os diretamente beneficiados com recursos (450 mil) e o total de trabalhadores empregados em arte e cultura foi de 855 mil postos de trabalho (Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural), em um aumento de 13% em relação aos postos de trabalho em 2020.
Mesmo em meio a alguns tropeços na implantação sob determinados governos estaduais ou locais, os resultados positivos são inegáveis. Isso se deve aos princípios conceituais, claramente explicitados na LAB: universalidade, descentralização, desburocratização, diversidade. A universalidade, como sabemos, não foi alcançada, até por conta dos recursos (R$ 3 bilhões) que, apesar de substanciais para a cultura, eram finitos, como os de agora também o são, mas cabe perseguir o objetivo, superando processos concorrenciais, com elevada demanda e poucos selecionados. Em relação à descentralização e diversidade os resultados são inequívocos. Quanto à desburocratização, variou-se conforme a localidade, mas houve passos muito significativos, engenhosos e eficazes, cabendo aprender com as experiências e melhorando-as. A lei também veio acompanhada de fórmula de cálculo (80/20) para distribuição prévia de recursos às unidades da federação, evitando lobbies e favorecimentos, uma vez que, antecipadamente, os estados e municípios já sabem o quanto irão receber. Também nos prazos para implantação, a despeito de toda má vontade e até oposição do governo à época, por conta da ampla mobilização e participação social, foi possível assegurar uma implementação relativamente ágil, dada as circunstâncias.
Recuperando a cronologia. As leis que deram origem à Aldir Blanc, em um total de cinco, foram protocoladas entre 29 de março de 2020 (encabeçada pela deputada Benedita da Silva (PT/RJ e diversos deputados e deputadas de vários partidos) e 16 de abril. Em abril aconteceram diversas manifestações dos setores da cultura em defesa de uma lei de emergência e em 29 de abril de 2020, por solicitação da deputada Perpétua Almeida (PCdoB/Ac), aconteceu reunião com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (Dem/RJ), contando com a presença dos parlamentares Jandira Feghali (PCdoB/RJ), André Figueiredo (PDT/Ce), José Guimarães (PT/Ce), além de mim e da cantora Zélia Duncan. Nesse encontro ficou acordada a tramitação em urgência de uma lei de Emergência Cultural, nomeando a deputada Jandira Feghali como relatora. A partir de então é gerada uma ampla mobilização social, com presença marcante dos Fóruns de Secretários Estaduais de Cultura, Secretários das capitais e regiões metropolitanas e da Confederação dos Municípios, e, sobretudo, de uma mobilização intensa e diária que envolveu mais de 40.000 fazedoras e fazedores de cultura, em todo o país, com centenas de encontros e capacitações, via movimento da Emergência Cultural. Nesse processo a lei ganhou a feição com que foi aprovada, incorporando as mais diversas sugestões. Foi tudo muito ágil:
– 28-29/maio – aprovada e sancionada a lei na Câmara dos Deputados, praticamente por unanimidade (exceto o partido Novo);
– 4/junho – sancionada a lei no Senado, sob relatoria do senador Jacques Wagner (PT/Ba);
– 10/julho – publicação da MP que destinou R$ 3 bilhões para a LAB, neste caso, o governo Bolsonaro, por má vontade, deixou para publicar a MP no último dia regulamentar, demorando 37 dias, como se pode ver;
– a regulamentação aconteceu 38 dias depois, em 17 de agosto, também fruto de indisposição por parte do governo federal;
– os primeiros repasses de recursos da LAB começam a acontecer em 3 de setembro de 2020.
– Depois disso, os prazos para regulamentação local, definição de editais e formas de transferência de recursos, inscrição, seleção, prazo recursal, contratos e pagamento, com média de 90 dias ou mais.
Apesar de os percalços, toda a má vontade por parte do governo federal, entre a aprovação da lei em 4 de junho e o primeiro repasse efetivo de recursos, foram 4 meses até que o recurso chegasse nos estados e municípios. Dalí, mais o tempo para seleção de projetos e propostas nos estados e municípios, cujos prazos variaram a cada local. Poderia ter sido mais ágil, a presidência da república poderia ter publicado a MP antes do prazo limite de 30 dias e a regulamentação poderia ter acontecido em menos de 38 dias corridos. Com isso teríamos ganhado uns 30 dias, encurtado o tempo para 90 90 dias, mas dentro da conjuntura e o governo de então até que conseguimos um resultado relativamente ágil. Foram momentos de intensa mobilização e trabalho, com muita dedicação desprendida e voluntária de muita gente. Os recursos tinham que chegar na ponta o quanto, a cultura estava paralisada, os fazedores de cultura sem meio para sobrevivência. Como disse Betinho: “Quem tem fome tem pressa!”. Assim procedemos.
Recapitular essa cronologia é importante para ficarmos atentos aos prazos, ainda mais no momento atual, em que as condições políticas são muito melhores. Afora a agilidade no prazo para regulamentação e implementação das duas leis, fazendo-as chegar na ponta o quanto antes, há que estar atento para a natureza de cada lei e de como se complementam e devem andar juntas.
A lei Paulo Gustavo, assim como a primeira LAB, tem natureza emergencial e os recursos são aplicados de uma única vez, havendo prazo para a execução, que foi prorrogado para 31 de dezembro de 2023, por decisão do Supremo Tribunal Federal, uma vez que o governo anterior não adotou providências para seu cumprimento. A origem do recurso são os saldos existentes no FNC (Fundo Nacional de Cultura), apurado na ocasião da lei em R$ 3,9 bilhões, sendo esse o valor que deverá ser aplicado. Esse saldo foi formado por ao menos uma década de contingenciamentos (quando o recurso está na conta do Fundo, mas o ministério do planejamento impede a sua execução, por conta de gestão de gastos do governo como um todo) e superávits. É dinheiro acumulado de anos. Inicialmente a LAB tinha por referência o uso desse recurso, em 2019 calculado em R$ 2,87 bi (daí os R$ 3 bi arredondados), mas por conta da perspicácia da deputada Jandira, foi possível incluir o recurso para a LAB no chamado Orçamento de Guerra para o enfrentamento à Covid. Isso foi muito bom, porque manteve os recursos no FNC possibilitando nova lei, a LPG, que os destravou. Necessário se dar conta disso para compreender a natureza do recurso, que agora será liberado de uma única vez. É uma poupança de anos, que precisa ser muito bem aplicada. Outro ponto a levar em conta é que 75% do valor (aproximadamente R$ 3 bilhões) precisa ser aplicado exclusivamente no audiovisual, uma vez que arrecadado pelo Condecine tendo destinação direta ao FSA (Fundo Setorial do Audiovisual). Foi a cadeia produtiva do audiovisual que contribuiu para esse fundo, que tem regras próprias e deve ser revertido para o audiovisual. A parte restante, de um pouco mais de R$ 900 milhões, será destinada a todos os demais setores da cultura. Bem compreendidos esses números e procedimentos devemos traçar uma boa estratégia para uma boa aplicação do recurso, que atenda o povo que faz e vive da cultura, como também à sociedade que se beneficia desse trabalho.
A Lei Aldir Blanc 2 (LAB2), por outro lado, tem outra característica. Ela é mais permanente, assegurando recursos orçamentários anuais de R$ 3 bilhões, pelo período de 5 anos, devendo ser reavaliada ao final. Isso resulta em um total de R$ 15 bilhões, repassados com a mesma formula de distribuição da LAB, de modo que todos os estados, mais o distrito federal e todos os municípios do país sabem, de antemão, o valor que irão receber a cada ano, a começar em 2023. Isso possibilita planejamento de médio prazo, que ultrapassa mandatos, inclusive. Outra característica é que ela funcionará como o Fundeb da Cultura, estruturando o Sistema Nacional de Cultura, realizando transferências financeiras para dar suporte orçamentário a uma série de atribuições locais e estaduais, da manutenção do patrimônio e manutenção de equipamentos culturais à aquisição de acervos, programas educativos em museus e bibliotecas ao financiamento à formação, produção/criação e circulação das artes, bem como à base comunitária e à diversidade.
Bem compreendidas e implementadas as leis se complementam. Sobretudo em 2023. Defendo que a regulamentação e implementação das Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, aconteçam de forma concomitante, no máximo com diferença de um mês, uma vez que a tramitação da LPG por parte do novo MinC está mais adiantada. Esse passo precisa ser acertado já! Se isso não acontecer antevejo graves problemas à cultura, e que precisam ser evitados enquanto há tempo.
Primeiro. O recurso que a LPG destinará a todas as áreas da cultura afora o audiovisual é pouco inferior a um bilhão de reais. Um valor considerável quando visto no montante, mas que representa 1/3 do que foi a LAB em 2020. Com a LAB muita gente ficou de fora, agora essa quantidade vai aumentar em 2/3. Isso gerar muita frustração, além de um dano efetivo na manutenção de postos de trabalho criados pela LAB (2/3 de 855 mil representa um corte de 570.000 postos de trabalho). Ou os recursos finais a cada contemplado terão que ser reduzidos em 2/3, ou os contemplados o serão. Não é necessário que isso aconteça caso a LAB 2 aconteça de forma concomitante, podendo cobrir essa diferença. Não há nenhuma justificativa técnica, operacional ou de política cultural que justifique a que a tramitação conjunta (no, no máximo, com diferença de um mês) não aconteça. Como pensador da Cultura e alguém que esteve bastante envolvido na LAB1 faço esse alerta e apelo enquanto é possível. (depois, caso necessitem e se interessem, posso demonstrar como isso pode acontecer de forma eficaz e ágil).
Segundo. A dimensão do Audiovisual na Lei Paulo Gustavo. O audiovisual é uma cadeia produtiva com características de indústria, são muitas partes envolvidas e muitos custos, anos de trabalho para que um produto se realize. Os recursos do FSA foram acumulados com muito sacrifício, as normas e legislações vem de ao menos duas décadas, o uso desse recurso de uma única vez será muito positivo, sobretudo no momento atual, não coloco em questão, mas há que aplicar conforme as especificidades da indústria do audiovisual e daqueles que construíram o Fundo. Há que respeitar pisos profissionais (como também em todas as áreas), a complexidade das contratações, envolvendo de roteiristas a motoristas, de atrizes a iluminadores e cinegrafistas, de estúdios a locações. A regulamentação terá que deixar isso muito claro, como também a aplicação nos estados e municípios. Por exemplo: editais para complemento de orçamento de obras em estágio avançado, mas não concluídas, subsídio para locações, coproduções ou consórcios (em que vários municípios ajudam a compor orçamento), circulação e difusão (incluindo TVs comunitárias, e não só). Se isso não ocorrer todo um setor da indústria cultural poderá ser desestruturado, e pior, não haverá poupança para reestrutura-lo nos anos seguintes, uma vez que as arrecadações do Condecine serão as de cada ano, não havendo saldo dos anos anteriores. Claro que a aplicação dos recursos do audiovisual devem contemplar o que já está previsto na LPG, como manutenção de salas, cineclubes, formação, claro também que devem existir categorias para iniciantes não profissionais e comunitários, produções solo, podcasts e novas criações em diferentes formatos, difusão. Mas se não houver atendimento às especificidades próprias da indústria, e aqui não me refiro às grandes, que viabilizam seus negócios de outra forma, com plataformas de streaming, grandes financiamentos, mas a toda uma cadeia produtiva profissional, que estão em situação intermediária, que, por conta da pandemia, desgoverno anterior e crise econômica, estão há anos sem acessar recursos, haverá um grande problema na aplicação da lei. São milhares de empresas e 300 mil profissionais envolvidos na atividade. Espero que todos esses fatores já tenham sido previstos na regulamentação que está por acontecer, mas, enfim, me senti no dever de registrar a preocupação.
Por último. E me referindo às duas leis em aplicação concomitante ou próxima. Algumas preocupações e sugestões:
– Serão dezenas de milhares de editais simultâneos. Faltará pareceristas qualificados. Pensem em editais regionais ou até mesmo estaduais, em cada temática. Isso irá garantir impessoalidade na seleção (muito importante), agilidade e qualificação técnica, além de poupar esforços e trabalho. Ao final cada município repassará o recurso ao selecionado correspondente. É bem possível e não é complicado executar (se necessário eu explico como fazer).
– Categorizem os editais. Não é adequado colocar um proponente iniciante ao lado de um profissional e este ao lado de um consagrado. Há espeço para todos. Há produções solo, coletivas, comunitárias, profissionais. É possível bem atender a todas, todos e todes, desde que a métrica dos editais seja bem formulada, essa categorização facilita até no processo de seleção. E é muito mais justa.
– Vamos utilizar muito bem esses recursos de quase R$ 8 bilhões. Que sejam indutores de ações estruturantes e permanentes. Por exemplo: se 30% da LAB 2 for destinado à Cultura Viva e aos Pontos de Cultura, será possível financiar, pelo período de 5 anos (evitando novos editais nos anos seguintes, no que diminui trabalho) 5.000 Pontos de Cultura ao valor unitário (importante que o valor seja comum a todos, pelo conceito da proposta) de R$ 120.000,00/ano. Precisamos sedimentar Arte e Cultura nos territórios. Isso resulta em R$ 600 milhões, sobrando R$ 300 milhões para as demais Ações da Cultura Viva (Griôs, Interações Estéticas, Economia Solidária, Pontinhos, para a cultura lúdica e infância, Cultura e Saúde, Pontos de Mídia Livre, etc...); também pode acontecer em outras atividades, como fomento a festivais, caravanas, enfim.
– Encantamento. O Brasil precisa se encantar com Arte e Cultura. A arte será a principal ferramenta para enfrentar o fascismo e as regressões civilizatórias. Que tudo seja feito com muita poesia e pouca burocracia. É possível! Deixo aqui uma sugestão: Caravanas SÉRGIO MAMBERTI de Arte e Cultura. Mil caravanas simultâneas de arte e cultura, com produção descentralizada e nas mais distintas linguagens, de apresentações artísticas a oficinas, alcançando todos os municípios e periferias do Brasil. Custo unitário por caravana: R$ 300 mil. R$ 300 milhões no total, se quisermos e soubermos fazer, encontraremos esse recurso nas leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, ou mesmo em apenas uma delas.
É o que eu tinha a dizer. Espero ter ajudado. Paz e bem.
Célio Turino é historiador, escritor e servidor público.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.