"Quando um filósofo examina o conceito de discurso racional, ele assume a atitude epistêmica de um participante”. Destacada do seu contexto, a declaração de Jürgen Habermas, em entrevista concedida à uma coletânea de trabalhos sobre democracia deliberativa de Oxford, soa como uma declaração cifrada. O reconhecimento do senso comum do filósofo enquanto imagem mais bem acabada do nefelibata por ex officio é, no que busca confrontar o autor alemão, o ocultamente da própria influência dos pensadores como agentes no mundo, ainda quando estrategicamente se distanciam dele para analisá-lo sem os ânimos exaltados da ordem do dia. Para Habermas, na medida em que o teórico examina as razões dispostas por outros participantes em interação no mundo, ele os interpreta inevitavelmente através do vocabulário disponível pela cultura política em que ele, teórico, também se insere. Assumir a posição como participante é reconhecer e denunciar os truques da imparcialidade enquanto retórica política na disputa entre razões. Resguardada do cenário de guerra, a carta aberta assinada por Habermas, o cientista político Rainer Forst, o advogado Klaus Gunther e a pesquisadora Nicole Deitel Hoff, representa também, por sua vez, a atitude epistêmica de um participante: Benjamin Netanyahu.
Publicada no último dia 13 de novembro no site de pesquisa Normative Orders, da Universidade Goethe de Frankfurt, a nota pública assume, nos termos do teórico do agir comunicativo, sua própria atitude epistêmica. Reconhecendo o caráter conflitante dos pontos de vista sobre a guerra em curso, a declaração defende a justeza da resposta de Israel aos ataques do dia 7 de outubro a uma festa rave no Kibbutz Re’im, quando centenas de pessoas foram feridas e mortas na operação Tempestade Al-Aqsa conflagrada pelas Brigadas Izz ad-Din al-Qassam, braço armado do Hamas. Lembrando do princípio da proporcionalidade, mas tão logo se esquecendo do que significaria para Israel assumi-lo a essa altura com os seus mais de 400 mil militares frente aos 30 mil combatentes do Hamas, a declaração condena as acusações de que o exército israelense promove nesse instante um genocídio palestino, declaradamente associando os críticos de Israel ao crescimento do antissemitismo. Em adesão clara às teses do Estado israelense, a nota encerra com o chamado para coexistência política entre palestinos e israelenses. Das nuvens de onde examinam-se os discursos racionais, nenhuma condenação ao governo de extrema direita de Benjamin Netanyahu que se esquiva da prisão através de pilhas de mortos. Nenhuma matemática para condenar a desproporção indecorosa entre as 11.261 vítimas de palestinos e as 1.200 vítimas israelenses até o presente momento. A atitude epistêmica pró-Israel é cristalina, e Habermas não a toma sem antes se utilizar, e sacrificar, o seu próprio pensamento.
Concebida nos anos oitenta, sua teoria do agir comunicativo buscou fundamentar uma nova forma de integração social da modernidade em franca desintegração através dos processos de diferenciação política, econômica e cultural nos marcos do capitalismo tardio. Sem a ingenuidade da qual muitos o acusam, tendo reconhecido os traços do seu próprio idealismo, Habermas supôs encontrar nas pretensões dos atos de fala um solo normativo comum para a convivência minimamente harmônica em um mundo fragmentado por conflitos. Entre as tradições republicanas e liberais, sua concepção de democracia deliberativa seria a afirmação do princípio de autonomia e soberania popular do qual nenhuma pessoa ou instituição poderia abrir mão sem antes esfacelar a própria dignidade humana.
Mas sem o substrato social e histórico que permitiu o surgimento e institucionalização dessa filosofia — os trinta gloriosos do capitalismo no pós-guerra e o Estado de bem-estar social fortemente orientado para o proteção dos cidadãos europeus —, o pensamento de um dos pensadores mais influentes do século XX desaparece, sem encontrar mais condições de ser. Como fez constar a Foreign Policy em matéria de 2021, um dos autores mais influentes na transição do século XX para o XXI parece não ter mais o que nos dizer diante de uma realidade agônica, quando todo consenso está sob suspeita.
Na declaração, os mesmos princípios de autodeterminação e soberania popular, encarnados pela resistência palestina, são esquecidos. Em nome do combate necessário e justo ao antissemitismo refratário, ignora-se, desde o primeiro parágrafo da “afirmação”, a emergência humanitária na Palestina. Sem qualquer condenação dos crimes de guerra promovidos por Bibi, os ataques aos três hospitais em Gaza pelas Forças de Defesa de Israel (FDI) são, ao contrário de significarem qualquer desmoralização da Convenção de Genebra, detalhes que dispensam nota.
Se o sionismo, como afirma Ilan Pappe, nasceu inicialmente da promessa cristã (e antissemita) de retorno dos judeus à promised land para que pudessem então ser convertidos ao cristianismo, confirmando a profecia da segunda vinda do Messias, a luta pela libertação judaica e palestina deve, numa posição consequente, ser uma única só contra à armação colonial. Mas Habermas, cujo pensamento atravessa o processo de desnazificação da Alemanha em meio a uma esfera pública receosa dos resquícios do autoritarismo fascista, percorre o caminho fácil e mistificador da white guilt, sem considerar ou temer sua associação à retórica macabra de Israel. Ao contrário, acena para a mentalidade do ticket que Theodor Adorno, seu antigo orientador, denunciou: promove o pensamento por blocos de significação através do qual todo crítico do sionismo torna-se, inevitavelmente, um antissemita.
Assim, o mesmo autor que propõe recuperar dialeticamente as energias e as lições da radicalidade democrática da Revolução Francesa, encara a violência do dia 7 de outubro apenas pelo seu valor de face. Seu normativismo, encharcado pelo principialismo abstrato, torna-se, contra seu próprio proveito, incapaz de se sensibilizar e reconhecer a autodeterminação de povos não-brancos que reagem à violência histórica. Ou ainda pior: reconhecendo a emergência dessa autodeterminação, a neutraliza com a ingenuidade cínica, ignorando a natureza do conflito e postergando a justiça e a paz. Nas trilhas desse mesmo normativismo, se por um lado o massacre promovido por Israel é justificado enquanto contra-ataque, amparado pelo direito de autodefesa, a operação Al-Aqsa é retirada de perspectiva histórica para ser condenada apenas por seus resultados. Os 76 anos de limpeza étnica e o fracasso dos Acordos de Oslo sabotados por Israel são apenas anedotas a serem omitidas.
Se em acordos democráticos o princípio de inclusão dos concernidos deve balizar a deliberação como garantia da legitimidade das decisões, resguardando a importância dos atingidos falarem por si mesmos sobre a condição que os afetam, na carta aberta não encontramos nada além da imposição abstrata da razão que solapa a voz dos palestinos tiranizados por Israel e o oportunismo fundamentalista do Hamas. Se é necessário, assim, desconfiarmos da exaltação sem critérios à violência revolucionária e do apoio irrestrito ao Hamas que setores da esquerda sustenta como princípio que não pudesse fagocitar os seus próprios entusiastas, também é necessário desmistificar qualquer comparação descabida entre o regime de força israelense e a reação palestina. É preciso inquirir o pensamento de Habermas em favor dele próprio.
Na Revolução Francesa e na resposta dos Aliados às forças hitleristas, a inovação e a irrupção da violência libertadora. Na Palestina, a anômica malcriação dos massacrados. Por que, afinal, a razão comunicativa não vai à Gaza?
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum