Por Paulo Donizetti de Souza, especial para Fórum
Dezesseis anos após a primeira versão, o filme “Ó Paí, Ó 2” volta às telas atualizado e preservando o ritmo, o balanço e a graça da produção de 2007. No mês da Consciência Negra, a batalha cotidiana do povo preto por, mais que sobrevivência, respeito e direito ao sonho, segue presente na continuação de “Ó Paí, Ó”.
O filme capta um retrato do país nas mazelas políticas e nos contrastes sociais, raciais, culturais e religiosos das ruas do Pelourinho, centro histórico de Salvador. Assim define o ator Lázaro Ramos, que volta a viver Roque, um aspirante a cantor de sucesso.
“Na Bahia, quem não sabe andar, pisa no massapê e escorrega”, diz a diretora Viviane Ferreira, citando versos de roda de capoeira. “É uma mensagem de vida e de força”, emenda Monique Gardenberg, que participou da direção em 2007, e se declara satisfeita por migrar para a coprodução e passar o bastão da direção “a quem de direito”, uma mulher negra.
Viviane foi a segunda mulher negra no país a dirigir um longa-metragem de ficção, “Um Dia com Jerusa” (2020). A primeira foi Adélia Sampaio, com “Amor Maldito” (1984). A cineasta – também advogada e ativista – destaca o protagonismo do Bando de Teatro Olodum no projeto “Ó Paí, Ó”. Da concepção original ao resultado final. Elenco e equipe de produção concederam entrevista coletiva online no último dia 13, após a exibição do filme para jornalistas.
Você é negro!
Quem viu a primeira versão lembrará de momentos de muito ritmo, muito riso, mas também de muita dor. Nela, a discussão entre o bandido Boca (Wagner Moura) e Roque (Lázaro Ramos) – “Você é negro! Você é ne-gro!”, grita Boca –, tornou-se cena antológica sobre racismo no cinema. Porque a resposta de Roque é uma aula que desmonta a cisão racial em que, por conveniência, o capitalismo dividiu a humanidade.
“Eu sou negro sim, mas por um acaso negro não tem olhos, Boca? Negro não tem mão? Não tem pau? Não tem sentidos, Boca? Não come da mesma comida? Não sofre das mesmas doenças e precisa dos mesmos remédios? Quando a gente sua, não sua o corpo tal qual o branco? Quando vocês dão porrada na gente a gente não sangra igual, hein? Quando vocês fazem graça a gente não ri? Quando vocês dão tiro na gente a gente não morre também, porra? Pois se a gente é igual em tudo, também nisso (receber pelo serviço prestado) vamos ser, caralho!”, responde Roque.
E se no filme de 2007 a história termina no assassinato de Cosme e Damião, os filhos miúdos de Dona Joana (Luciana Souza) mortos a tiros pela polícia, é justamente pela dor de Dona Joana – enlouquecida com a perda dos filhos – que a história recomeça em “Ó Paí, Ó 2”. A perda de filhos pretos e pobres mortos pela Polícia Militar, aliás, ainda é inexplicavelmente drama crescente entre as mães da Bahia, do Brasil, de hoje.
Luciana (que atuou em “Bacurau” e foi premiada pelo curta “Inabitável”) diz que a profissão não é dissociada de sua história de vida. Assim como a história do ator Vinícius Nascimento, que aos 7 anos viveu Cosme em 2007 e agora, aos 25, volta ao elenco como um sem-teto acolhido por Joana. “Sou morador do Pelourinho há 25 anos. As pessoas vão entender muito do que eu quero falar”, diz ele.
Em sua loucura e dor, Dona Joana, evangélica, acabará implorando a Iemanjá, pela volta do filho que perde pela segunda vez. Mas em sua prece, ao se dizer “crente em Deus”, parece rebaixar a expectativa de ser atendida.
A propósito, assim como o carnaval no filme de 2007, a Festa de Iemanjá é o pano de fundo para a comunidade do Pelourinho colocar em ação o plano de resgate do bar de Neuzão. Ainda que a tradição da festa esteja em baixa entre o próprio grupo: “Tem mais asiático do que gente”, diz a personagem Maria (Valdinéia Soriano), agora ex-mulher do taxista Reginaldo (Érico Brás). Por sinal o chofer está um pouco mais “robusto” do que em 2007: “Quem não tem barriga não tem história”, defende-se.
Outro planeta
Roque abre “Ó Paí, Ó 2” brincando com as transformações do país em uma década e meia. “Quando você olha, assim, parece que tá tudo igual. Mas de perto, assim, com uma lupa, você percebe como todo mundo fez as malas e se mudou para outro planeta”.
Segundo ele, um dos fatores encorajadores da nova produção foi a repercussão perene da história nas redes. “O público não deixou esse filme morrer. Essa obra teve o poder de continuar na vida das pessoas”, afirma Lázaro Ramos. “E voltar com ‘Ó Paí, Ó’ é uma oportunidade de rever o que aconteceu com nosso país nesses mais de 15 anos”.
O mote para a sequência é a batalha da comunidade pela recuperação do bar de Neuzão (Tânia Toko). O estabelecimento foi tomado em uma trambicagem envolvendo especulação imobiliária, corrupção cartorial e o “empreendedorismo” coreano e chinês e sua crescente ocupação do comércio local, como ironiza Tânia Toko.
A mobilização toma o ritmo do Bando de Teatro Olodun, onde o próprio Lázaro Ramos debutou como ator aos 15 anos. Hoje, 30 anos depois, ele admite que o joelho já não é mais o mesmo, mas não é o que parece.
Dira Paes, que voltou à personagem Psilene dois dias depois de encerrar as gravações da novela “Pantanal”, considera o Pelourinho e o bando “por si só” uma internet. “Uma conexão de pessoas através de coisas que concordam e discordam. É um dos filmes pelo qual mais sou lembrada nas ruas, como se não houvesse esse hiato de tantos anos”.
Novas ferramentas
Se o moral da fábula é valorizar a força da coletividade diante de uma vida de cão, nas mais precárias condições, a narrativa traz ao outro planeta instalado no Pelourinho as novas ferramentas que se integrarão à luta. Uma juventude que usa o slam para se apropriar e difundir a força das palavras. Que conhece Malcom X, mas prefere citar Beyoncé. Que incorpora ao seu arsenal a capilaridade das redes para se comunicar, a inteligência hacker para investigar, a linguagem do metaverso (encontro de internet com realidade digital e virtual, e transição para a inteligência artificial) para convencer.
Tudo isso sem perder a ginga, a explosão musical e corporal. Afinal, em meio a tantas dores, pilantragens, mazelas e dramas, o filme ainda é uma... comédia. “Uma chanchada moderna: com muito humor, música e teatro de revista”, classifica o dramaturgo e escritor Elísio Lopes. Ele assina o roteiro ao lado de Daniel Arcades, Igor Verde e Viviane Ferreira, com a ajuda de Luciana Souza, Rafael Primot e Bando de Teatro Olodum.
“Todos os personagens são importantes, todos ajudam a construir os textos”, explica. “Todos são criaturas de si mesmos, e partimos do entendimento de que é o Brasil de hoje que está aqui”, avalia Elísio. Diversos nomes de diferentes gerações da música, como Margareth Menezes (atual ministra da Cultura), Tiganá Santana, Russo Passapusso (Baiana System), fazem pontas valiosas.
Rodado bem no meio da vida real de Salvador, “Ó Paí, Ó 2” tem estreia nacional no próximo dia 23. A produção reforça ainda a importância da cultura e do esforço de levar o espectador brasileiro ao cinema ao informar que o processo criou 850 empregos diretos e indiretos.
Confira o trailer de “Ó Paí, Ó 2”: