Anna Marina, colunista do Estado de Minas, sofre de espasmos. A razão não é clínica, mas social. Uma das colunistas mais longevas e orgulhosas de ser a primeira mulher admitida na redação do tradicional jornal mineiro, ela está estupefata com a cena que ganhou o mundo no dia 1° de janeiro; quando empossado, Luiz Inácio Lula da Silva, presidente eleito, subiu a rampa do Planalto acompanhado de representantes da sociedade civil, em gesto inédito.
Embora as críticas de Anna Marina se desdobrem pelo basque godê, os bordados, ou até mesmo pelo derrière da primeira-dama, as críticas da consultora de etiqueta passam ao largo da moda, o seu métier de costume.
Discorrendo sobre o vestuário da posse, a jornalista presta, contra sua própria intenção, testemunho da visão de mundo (sua weltanschauung, para nos elevarmos ao nível da sofisticação de Anna Marina) das nossas elites. Uma denúncia sobre o mau gosto do povaréu que, não refletindo o refino da nossa colunista no espelho, a assombram num domingo à tarde ao ligar a televisão e vê-lo subir, de forma representativa, ao poder. Toda etiqueta da nossa ilustríssima, torna-se pretexto para, indiretamente, mandar servir brioches aos índios, pretos e estropiados.
Estou me referindo, claro, ao texto publicado na sua coluna no último dia quatro. No seu comentário, a consultora de etiqueta esqueceu de ensinar os seus demônios a sentarem-se na mesa do debate público. Pelo contrário, decidiu empoderá-los na sua malcriação e substituir a crítica política pelo preconceito mais rasteiro. Para Anna Marina, o que se viu na posse presidencial foi uma “forçada de mão”. “Essa gente responsável por representar o novo poder que o presidente devia receber me causou uma péssima impressão”, escreveu.
Para ela, a 'produção apelativa', como descreve, é antessala do apocalipse político que vem por aí. Através do seu olhar aguçado, é capaz de enxergar no bordado de Janja o cripto populismo das esquerdas em direção aos mais pobres. Só não vê quem não quer. E Anna Marina viu.
Não, não lemos errado. Anna Marina pensa rigorosamente o que escreve. Aquela gente toda subindo a rampa ao lado de Lula, lhe causou péssima impressão. E ela não se refere somente à produção de Janja — refere-se, precisamente, à catadora de lixo, ao garoto negro, ao líder indígena, à cozinheira, todas minorias representadas no cerimonial. Tamanho foi o seu desgosto em vê-los que desejou até mesmo ter partido a bordo com Bolsonaro para Miami para não ter de ver a cena. Imagino! Na meca dos nossos patriotas, preferiria ver os quadros do Romero Brito emoldurados na parede de algum shopping center sob a luz fria a ter de olhar para aqueles rostos na televisão, em cadeia nacional. É uma gigante do bom gosto ignorada pelo próprio país.
Se a nossa colunista está sendo ou não racista, não cabe julgarmos aqui. Reflitam daí. O que sabemos, sim, é que a tal “má impressão” da qual fala Anna Marina em muito assemelha-se àquela intuição que instrui policiais a suspeitarem e abrirem fogo contra pobres e negros nas ruas do Brasil; levando-os a confundirem guarda-chuva e pedaços de pau com armas de fogo. Talvez Anna Marina, como no livro do reacionário Theodore Dalrymple, "Em defesa do preconceito", pudesse se defender alegando a necessidade de conceitos preconcebidos como elemento evolutivo para a sobrevivência da espécie humana no mundo. Mas ela não vai tão longe. Até para os padrões da delinquência intelectual e moral do seu campo político, Anna Marina prefere a superficialidade dos tecidos.
Como de costume na sessão de colunistas, o jornal Estado de Minas pondera que a opinião da emérita colunista não reflete (necessariamente!) a posição editorial do grupo. Que bom!!! Uma Anna Marina já é o suficiente para contaminar o ar puro da esfera pública que ocupa. E ainda que saibamos que não resiste sozinha com sua sanha preconceituosa, tanto melhor que não tenha mais aliados para degradar o espaço público, já suficientemente amesquinhado após quatro anos de governo Bolsonaro.
Agora, queremos mesmo saber até quando pessoas como Anna Marina irão, entre bordados e basque godês, esconder por debaixo dos panos o desprezo pelo povo, encontrando espaço de sobra na imprensa para destilar sua miséria espiritual.
Uma senhora sofisticada e confiante da própria compostura deveria prezar também pela clareza e a honestidade: sem rodeios, mande logo nos servirem os brioches, Anna!
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum