EXEMPLO

“Argentina, 1985” fala ao Brasil – Por André Azenha

Aqui deixamos passar incólumes assassinos de farda. E essa falta de punição resultou em quatro anos do pior governo da história do país

Darín e Peter Lanzani interpretam Strassera e Ocampo junto ao grupo de jovens advogados.Créditos: Prime Vídeo/Divulgação
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Vencedor do Globo de Ouro na categoria Filme Estrangeiro e disponível no Prime Vídeo da Amazon, “Argentina, 1985” narra a história verídica dos promotores públicos Julio Strassera e Luís Moreno Ocampo, que ousaram investigar e processar a ditadura do país (1976-1983).

Strassera, inicialmente, achava que o processo daria em nada. Via colegas de magistrado e do governo civil, então recém-restaurado, relutantes. Agiu tal qual o Eliot Ness, de Kevin Costner, em “Os Intocáveis” (1987, de Brian de Palma). Cercado por policiais e políticos veteranos subordinados ao mafioso Al Capone, o agente do Tesouro Americano seguiu o conselho do experiente e honesto policial Jim Malone (Sean Connery) e foi buscar jovens idealistas na academia de polícia. No caso, o impetuoso George Stone (Andy Garcia). Strassera, dessa maneira, arregimentou uma equipe de jovens sonhadores e determinados, que não foram contaminados pelos erros de velhos medrosos e corruptos.

O protagonista é interpretado por Ricardo Darín, o ator argentino preferido dos brasileiros, de “Clube da Lua”, “O Filho da Noiva”, “Um Conto Chinês”, “Relatos Selvagens”, “Nove Rainhas”, “O Segredo dos seus Olhos” e tantos outros. Não vou cair naquela de dizer que o cinema argentino é superior ao brasileiro. Conversa para outro momento. Darín é tipo vinho, fica melhor a cada trabalho.  

E por mais que mostre situações de um país que, muitas vezes, os brasileiros desconsiderem por rivalidades futebolísticas, “Argentina, 1985” é um filme que fala direto ao nosso povo. 

Mostra que lá, após sete anos de ditadura - um terço de tempo do que durou a ditadura no Brasil, mas não menos sangrenta ou violenta, pelo contrário, pois o regime perseguiu, sequestrou, torturou, assassinou milhares de pessoas inocentes - os hermanos fizeram a lição de casa e botaram atrás das grades os militares responsáveis. Aqui, até houve a Comissão da Verdade anos atrás, mas longe da eficiência do país vizinho.

Na canção “KGB”, do CD “Como Estão Vocês?” (2003), os Titãs alertavam:

“Ainda estão enterrados debaixo da cama. Desaparecidos, generais de pijama. Estão bem guardados no fundo do armário. Sequestradores e sequestrados. Ainda vão todos voltar e vão voltar todos juntos. Ainda vão todos voltar para assombrar o mundo”.

Pois é, aqui deixamos passar incólumes assassinos de farda. E essa falta de punição resultou em quatro anos do pior governo da história do país, de seres que sonham torturar, proibir, ditar regras, têm sanha pelo poder e se excitam com tudo isso. Não falo dos militares corretos, que sabem e entendem as Forças Armadas como instituições de Estado, não de governo. Não generalizo a instituição, apesar da caterva que, volta e meia na história do Brasil, interfere na democracia.

Que “Argentina, 1985”, cuja narrativa lembra bastante longas-metragens e séries de tribunal hollywoodianos, e nem por isso perde valor, sirva de lição para nós após os atentados terroristas de 8 de janeiro de 2023. E que os boçais enfrentem, dentro do processo democrático, o rigor da lei, chafurdem no xilindró e tenham seu lugar de direito na lata de lixo da história.

*André Azenha é crítico de cinema e produtor cultural.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.