OPINIÃO

Organização golpista contínua - Por Fernando Augusto Fernandes e Guilherme Lobo Marchioni

A tentativa de golpe de Estado ocorrida no dia 8 de janeiro é ponto máximo do planejamento de desrespeito à democracia, mas não é ato isolado. E o perigo não passou

Bolsonaristas durante ataques em Brasília.Organização golpista continua - Por Fernando Augusto Fernandes e Guilherme Lobo MarchioniCréditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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A tentativa de golpe de Estado ocorrida no dia 8 de janeiro é ponto máximo do planejamento de desrespeito à democracia, mas não é ato isolado. E o perigo não passou. As medidas tomadas após a tentativa de golpe, como intervenção no Distrito Federal, as prisões de golpistas, o afastamento temporário do governador, a busca e decretação da prisão preventiva do ex-ministro e ex-secretário de segurança Anderson Torres, as primeiras pelo presidente eleito Lula e seu ministro da Justiça, Flávio Dino, e as demais pelo ministro Alexandre de Moraes e mantidas pelo Plenário da Suprema Corte, diminuem em muito o risco.

No entanto, o documento encontrado na casa do ex-ministro constando uma minuta de decreto que interviria na eleição brasileira, cuja explicação foi de que lhe havia sido entregue e seria destruído, e não foi apresentada ao presidente, não pode ser examinado de forma isolada, tal qual o infame ataque aos poderes da república de 8 de janeiro.

O plano golpista teve várias frentes e complexo, teve participação de Bolsonaro de forma pública evidente com seus discursos, como uma máquina que se utilizou de valores públicos e das engrenagens do Estado. Ainda, foi decorrente dos atos anteriores do lava-jatismo que contribuíram com a ascensão de Bolsonaro ao poder, pela injusta prisão, sequestro e condenação ilegal (e anulada) de que Lula foi vítima.

Toda a rede de comunicação montada pelo “gabinete do ódio” e as “milicias digitais” conduziram a uma realidade paralela, ou a um “Brasil paralelo”. O pesquisador João de Castro Rocha analisa essa estratégia transnacional da extrema-direita em seu livro “Guerra cultural e retórica do ódio” (Editora Caminhos), trazendo para análise o que o psicólogo social norte-americano Leon Festinger publicou, em 1957, um clássico chamado “Uma teoria da dissonância cognitiva”.

O jornalista Florestan Fernandes tratou também desse problema no artigo “A captura das mentes e a fé inabalável nas fake news”: “Aos 80 anos, a senhora acredita piamente nas mentiras propagadas pela extrema direita nos grupos de WhatsApp. A filha já fez de tudo para alertar a mãe da manipulação que ela vem sofrendo, mas a senhora não acredita. Dá como certo tudo o que recebe nas mensagens do ‘zap’. Em estado alterado, afirma, convicta, que os comunistas irão tomar as propriedades da família. Situações como esta são comuns”.

A partir desse moderno canhão de manipulação de uso das redes digitais, também muito bem exposto pelo documentário “Xadrez da ultradireita mundial à ameaça eleitoral” (TV GGN), assim como atuações de Steve Bannon na eleição de Trump, é preciso entender as conexões dos ataques a democracia no mundo e no Brasil.

Esta estratégia autoritária em oposição ao Estado Democrático de Direito, nutrida por Bolsonaro com a dedicação de seus fanáticos, tem a política de armas como um de seus elementos. A liberação e incentivo ao armamento da população civil visava criar um número de pessoas vivendo essa realidade paralela suficientes para que servissem a uma guerra civil. Não é à toa que o extremista preso por ter colocado uma bomba em um caminhão tanque era registrado como colecionador e levou armas para Brasília. Tivemos inúmeras falas de Bolsonaro nesse sentido, tal como quando asseverou: “povo armado não é escravizado”, e de outros personagens incentivando a resistência armada, e que podem ser selecionadas pelo Ministério Público para instruir devidas apurações.

Os dois elementos criaram uma bomba relógio, com intuito de criar condições sociais para um golpe. O incentivo de bloqueio de estradas para que pessoas ficassem a frente de quarteis pedindo intervenção federal é - ato que configura crime-, ao ataque armado, como acabou fazendo Roberto Jefferson, inclusive aos ministros da Suprema Corte, seja nas redes, nas ruas ou no exterior, desdobram de um plano articulado para o golpe.

No centro de tudo encontra-se Bolsonaro, seus discursos de ódio são públicos, a máquina de criação de notícias falsas já conhecida, suas articulações de poderes com finalidades antidemocráticas, o uso da máquina no 7 de setembro, seus xingamentos a ministros do Supremo Tribunal Federal, motociatas ostensivas que encontram paralelo no fascismo de Mussolini, o uso do cartão corporativo, e seu silêncio aparente depois da eleição enquanto tentava criar o caos social, sem reconhecer o resultado da candidatura eleita democraticamente.

Não há dúvida, ante os depoimentos ofertados à Polícia pelos golpistas presos, que discursos de Bolsonaro inflamaram a turba que invadiu a sede dos três poderes. Golpistas repercutem falas do ex-presidente, tal como a alegação infundada de fraude nas urnas eletrônicas, a interpretação equivocada de que o art. 142 da Constituição Federal permitiria às forças armadas influir no campo político, a falácia da ameaça comunista, a compreensão deturpada do direito à liberdade de expressão, entre outros chavões que constituem o discurso de ódio que acompanhou o governo Bolsonaro.

A tentativa de golpe que eclodiu em 8 de janeiro se frustrou, mas não cessou. Estamos diante de uma organização e associação criminosa, já que tratamos da reunião de mais de 4 pessoas que visam praticar o crime de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito, Golpe de Estado, ou mesmo a incitação publica de animosidade entre as forças armadas e os poderes constitucionais, de forma transnacional e cuja continuidade delitiva persiste.

Vale fixar os delitos mais graves. O Código Penal tipifica criminalmente no art. 359-L a tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringido o exercício dos poderes constitucionais, com pena de 4 a 8 anos. E, no art. 359-M, estabelece punição de 4 a 12 anos para a tentativa de golpe de Estado, isto é, tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído. Cite-se, ainda, a pena de 1 a 3 anos pela associação de pessoas com o fim específico de cometer crimes, e a pena de 3 a 6 meses pela incitação publica de animosidade entre as forças armadas e a sociedade.

Detalhe significativo no contexto atual é que o Decreto 11.366/23 de Lula, que trata sobre novas regras ao porte de armas de fogo, afirma a cassação de autorizações de posse de armas do titular que responda a inquérito policial, o que deverá ser aplicado a todos os investigados por crimes contra o Estado Democrático de Direito a partir do indiciamento em investigação.

Há já plena condição de uma denúncia por crime de tentativa de Golpe contra Bolsonaro, com uma longa descrição criminosa. O Ministério Público terá um papel ainda mais essencial na apuração destes crimes, eis que a Constituição Federal lhe incumbe da defesa da ordem do regime democrático em seu art. 127.

O próximo procurador geral precisa ter coragem para colocar no papel o necessário para a condenação de todos que participaram da tentativa de golpe, e como alguns dos autores ainda ocupam cargos a competência permanece na Suprema Corte, devendo ser tema a ser tratado pela Procuradoria Geral da República. O atual subprocurador geral da república apresentou ao STF pedido de investigação de Jair Bolsonaro em 13 de janeiro, porém, cauteloso, apenas requer providências para investigar o crime de incitação de animosidade contra os poderes constitucionais e é prudente que se investigue as condutas do ex-presidente, dos financiadores da tentativa de golpe, e políticos que também se envolveram no crime contra a democracia que presenciamos.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.