Em julho de 2019, por ocasião do trigésimo aniversário da queda do muro de Berlim, o presidente francês Emmanuel Macron anunciava que a Otan se encontrava em estado de “morte cerebral”. Em uma entrevista ao The Economist, Macron assinalava a necessidade de uma clarificação dos objetivos estratégicos da organização militar ocidental, considerando que a Europa não podia mais contar com os Estados Unidos para defender seus aliados. “A Europa está à beira do precipício”, alertava então o presidente francês.
Isto foi um ano e meio antes do início da invasão da Ucrânia pelas tropas de Vladimir Putin. A guerra teve o efeito inesperado de despertar a Aliança Atlântica. A Europa acordou e adotou à unanimidade a decisão inédita de fornecer armas para um país de fora da Organização, os Estados Unidos adotaram sanções duríssimas, a Otan enviou tropas e armas para as suas bases na Europa central.
E mais: países que até ontem defendiam com unhas e dentes a sua neutralidade, agora querem integrar o bloco militar ocidental. Dentre eles, Suécia e Finlândia.
Pela primeira vez, uma pesquisa realizada na Suécia conclui que a maioria da população, 51%, quer se juntar à Aliança Atlântica, 16% mais que no início da guerra na Ucrânia.
Suécia e Finlândia são, há décadas, países neutros em conflitos armados. No entanto, a invasão da Ucrânia veio relembrar um duplo dilema: por um lado, os dois países nórdicos procuram maior segurança e proteção militar contra ameaças externas; por outro, a Rússia sobe o tom ameaçador em direção dos vizinhos do Norte da Europa. Isso faz com que Suécia e Finlândia queiram se aproximar da Otan.
Os sociais-democratas suecos, no governo, têm sido contra a adesão, mas a invasão do território ucraniano está mudando a opinião pública e traz de novo o debate ao Parlamento.
Paralelamente, na vizinha Finlândia, vemos a mesma discussão. A ministra dos Negócios Estrangeiros, Tytti Tuppurainen, já assumiu ser “altamente provável” que o país venha a aderir à Otaan. “O povo finlandês parece já ter tomado a sua decisão e existe uma enorme maioria a favor”, afirmou. De acordo com o jornal Helsingin Sanomat, 59% dos finlandeses concordam com a adesão.
Caso Helsinque se candidate, a porcentagem da população sueca favorável à adesão subiria para 64%, desencadeando uma mudança histórica do posicionamento de neutralidade dos países do Norte da Europa.
Um relatório de 13 de abril do governo da Finlândia (país que partilha uma fronteira de mais de 1.340 quilômetros com a Federação Russa) aponta as vantagens da entrada na Aliança e salienta, por exemplo, o aumento da “estabilidade” na zona do mar Báltico.
A guerra na Ucrânia despertou “uma mudança fundamental na segurança e no ambiente operacional da Finlândia e da Europa”, lê-se no documento.
“Os finlandeses acreditam que se Putin pode assassinar os seus irmãos na Ucrânia, nada o impede de fazer o mesmo na Finlândia. Não queremos voltar a ficar isolados”, assinalou Alexander Stubb, ex-primeiro-ministro finlandês, ao recordar a Guerra do Inverno (1939-1940), iniciada com a invasão soviética da Finlândia. Há 80 anos, a guerra tirou a vida a 80 mil soldados finlandeses e o tratado que pôs fim ao conflito incluiu a promessa de neutralidade do país.
Apesar de o acordo ter sido cumprido, a neutralidade dos países nórdicos tem ficado fragilizada desde o final da Guerra Fria: eles integraram a União Europeia, aderiram à Parceria para a Paz da Otan e participaram de exercícios militares da Aliança. A ponto de serem considerados parceiros disfarçados da organização militar ocidental.
A presença militar na fronteira da Rússia com a Finlândia é motivo de preocupação, o país terá de preparar-se para “o uso ou a ameaça de uso militar contra si”, adverte o relatório do governo. “A Finlândia decidiu que queria juntar-se à Otan na madrugada de 24 de fevereiro, às 5h, quando as forças russas invadiram a Ucrânia”, declarou Stubb.
Mas por enquanto isto é apenas intenção, na medida em que Putin não esconde que haverá represálias à Suécia e Finlândia, para dissuadir os respectivos governos da adesão. Moscou vê essa possibilidade como uma ameaça à sua segurança.
O Kremlin já avisou que destacará armas nucleares para o Báltico, caso os países vizinhos decidam seguir adiante. O vice-presidente do Conselho de Segurança russo, Dmitri Medvedev, um dos mais próximos interlocutores de Putin, e ex-presidente da Federação Russa, veio a público, em meados de abril, para ameaçar abertamente Suécia e Finlândia de utilização da arma nuclear. “Até hoje, a Rússia não tomou tal medida e nem iria tomar”, disse ele acrescentando, “a não ser que sejamos forçados”.
Nesse caso, Putin já indicou que enviará estas armas para o enclave de Kaliningrado, território situado entre Lituânia e Polônia sob controle russo, habitual palco de exercícios militares de Moscou.
Em 2009, a Rússia moveu para lá mísseis capazes de atingir toda a Polônia, cidades da República Tcheca, Dinamarca e Alemanha. Essa escalada da guerra seria, segundo analistas, o principal risco de um conflito global, conforme advertiu a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, Maria Zakharova: os países nórdicos “devem compreender as consequências” da adesão nas suas relações bilaterais e na “arquitetura de segurança europeia como um todo”.
Em resposta às novas ameaças do Kremlin, a ministra dos Negócios Estrangeiros finlandesa assegurou que o governo tomará decisões com base exclusivamente nos seus próprios interesses e na interpretação da situação global. “Já vimos o que a Rússia é capaz de fazer, o que Putin é capaz de fazer. É um ditador implacável e quer recuar no tempo, aos anos da antiga URSS”.
A Finlândia já começou a se preparar contra um ataque russo. A associação finlandesa de reservistas abriu um curso de defesa para 400 mulheres, e já está com 500 candidatas na fila de espera. O exército conta com 280 mil soldados e 900 mil reservistas. As relações entre os dois países, que já eram difíceis, pioraram com a invasão à Ucrânia. Helsinque tem 5 mil abrigos antiaéreos, além de um longo sistema de metrô, e estoque para alimentar os 630 mil habitantes da cidade por duas semanas. O exército conta com 280 mil soldados e 900 mil reservistas. O Departamento de Estado norte-americano confirmou, dias atrás, que há negociações entre a Otan e diplomatas dos dois países.
Uma decisão deverá ser anunciada antes da Conferência da Otan em Madri, no final de junho. A imprensa de Estocolmo e Helsinque já noticiou que a decisão está tomada e que Suécia e Finlândia deverão mesmo avançar com o pedido de adesão nos próximos dois meses.
Neste caso, a atenção irá se voltar para Moscou. Vladimir Putin seria capaz de atacar os países nórdicos, como fez com a Ucrânia? Uns respondem que sim, que o ditador russo é capaz de tudo. Outros, que este seria seu maior erro estratégico desde 24 de fevereiro. Outros, enfim, que seria o início da 3ª Guerra Mundial. Loucura? Não, a se acreditar em Willian Joseph Burns, atual diretor da CIA, que conhece bem Putin por ter sido embaixador dos Estados Unidos em Moscou. Ao falar no Senado americano, Burns comentou que Putin não é louco, que está mais próximo de ser um “tirano cruel”.
*Milton Blay é formado em Direito e Jornalismo, já passou por veículos como Jovem Pan, Jornal da Tarde, revista Visão, Folha de S.Paulo, rádios Capital, Excelsior (futura CBN), Eldorado, Bandeirantes e TV Democracia, além da Radio France Internationale.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.