Entre maio e junho de 2019, fui surpreendida com uma ligação vinda diretamente do estado do Texas, Estados Unidos. Do outro lado da linha, a pessoa dizia ser um jornalista que havia sido orientado a me procurar, uma vez que, segundo ela, eu seria a pessoa certa para ajudar a evitar um suicídio coletivo de aproximadamente 500 jovens que aparentemente viviam em castelos da associação privada Arautos do Evangelho. É importante ressaltar que, nesse período, eu atuava como Secretária Executiva do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe).
É claro que, a princípio, acreditei que se tratava de algum tipo de trote descarado, tamanha a surrealidade das falas desesperadas daquele homem que, se fossem de fato verdadeiras, representariam uma situação crítica e muito, muito grave. Por isso, solicitei um tempo para não somente refletir sobre o que havia me relatado, como também para saber se era algum tipo bizarro de ligação falsa. Nesse sentido, iniciei minha busca procurando saber mais sobre os tais Arautos do Evangelho, pois até aquele momento nunca tinha tido interesse em saber mais sobre esse segmento católico aparentemente inofensivo.
No entanto, não demorou muito para me deparar com uma situação tenebrosa, sobretudo ao encontrar diversos relatos de mães, pais e ex-arautos sobre os exorcismos violentos, a tal “Bagarre”, a “Marcha” e, sobretudo, as punições. Ainda assim, uma das coisas que mais me chocaram foi verificar, através de fotos, como os jovens arautos – tanto as meninas, quanto os meninos – eram exageradamente iguais: as mesmas vestimentas, o mesmo cabelo penteado para trás de forma que aparecia até o couro, além de todos terem a mesma estrutura física, magros e pálidos.
De imediato, retornei o contato com o jornalista Giulio Ferrari. Embora agora tivesse um pouco mais de compreensão do que ele me dizia, eu ainda estava longe de entender a real dimensão da situação de violência e de violações de direitos daquela instituição. Por isso, o segundo passo foi buscar, junto ao jornalista, os nomes de quem eu poderia contatar. Mas o que viria a partir disso foi chocante, e ninguém poderia imaginar quanto sofrimento e dor existia nos mais diversos depoimentos.
A primeira mãe é simbólica. Entrei em contato com ela em Brasília, e ela imediatamente se dispôs a vir para São Paulo. No dia marcado, conversamos das 11h da manhã às 19h. Essa mãe me relatou, junto ao seu choro de raiva, culpa, dor e humilhação, como todo um sonho havia se tornado um enorme e irreparável pesadelo.
Seu único filho foi entregue aos Arautos do Evangelho na perspectiva de um futuro melhor, já que tudo começou com a promessa de que ele estudaria em um colégio internacional, com os melhores professores e com uma oportunidade de vida que ela nunca poderia oferecer. Porém, com o passar das semanas, seu filho já se mostrava arredio em relação à família e não queria mais voltar para casa. Após dolorosos dois anos sofrendo violência psicológica por parte dos Arautos, que diziam que ela estava querendo negar um futuro melhor ao seu filho, definitivamente o menino já não era mais o mesmo: não demonstrava afeto algum pela família, não expressava alegria e estava completamente tomado pela alienação ao mundo real, vivendo apenas para servir ao tal Monsenhor João Clá, o fundador da instituição. Em um momento de desespero, sequestrou o próprio filho e o levou de volta para casa.
A partir desse relato, imediatamente busquei por ajuda no gabinete da deputada estadual Beth Sahão e fui orientada pela sua assessoria a levar essa mãe para conversamos. Nesse ínterim, ela entrou em contato com um ex-Arauto para que também contasse seu relato no gabinete, e seguimos então para a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), onde a assessoria da deputada pôde ouvir a história de ambos.
Segundo ele, também ingressou na instituição durante sua juventude a partir das mesmas promessas de estudo e de vida próspera. Entretanto, o que recebeu foram punições desumanas que iam desde privação de comida e de fala com os outros internos, até o castigo conhecido como “Capítulo”. Ainda que o “Capítulo” seja comum para a ordenação dos padres, os quais realizam o ato de maneira voluntária e totalmente consciente, o ex-Arauto relatou que foi obrigado a permanecer deitado por mais de doze horas com o rosto no chão e os braços abertos, sem poder se movimentar, comer, beber água ou ir ao banheiro, enquanto outros jovens foram orientados a humilhá-lo e xingá-lo durante o castigo. Ao término da punição, estava urinado, esmagado emocional e fisicamente, e ficou prostrado numa cadeira até se refazer.
No dia seguinte, iniciei uma peregrinação em busca de famílias e de ex-Arautos que desejassem conversar e relatar suas experiências com a instituição. Nesse sentido, ouvi histórias de mais quatro jovens do estado de São Paulo, bem como três mães e uma família, mas também dialoguei com uma ex-Arauta brasileira que está no México, e com outra no Canadá. Ressalto, ainda, que fui convidada a participar dos grupos de WhatsApp das vítimas dos Arautos e que, daí em diante, muitas das mães passaram a me ligar rotineiramente.
O que muitas compartilhavam comigo era o mesmo sentimento: medo. Mas medo, principalmente, da filha ou do filho morrer ou adoecer, tendo em vista que os Arautos não levavam seus enfermos a clínicas ou a hospitais, mas os faziam beber da água da roupa lavada de Monsenhor João Clá, ou ainda do chá das folhas do túmulo da mãe de Plínio Corrêa de Oliveira – fundador da associação Tradição, Família e Propriedade que, após a sua morte, foi desmembrada e de um dos seus ramos nasceu a entidade Arautos do Evangelho. Além disso, as mães tinham medo dos castigos que eram aplicados em seus filhos das mais perversas formas: marchar por horas a fio apesar das dores e cólicas; obrigar a comer por último e ajoelhado; carregar peças que esqueceu de colocar no lugar por um tempo determinado; passar por sessões de humilhação por horas, sendo xingados e humilhados por outros internos; ter que se manter em silêncio por semanas, entre outras situações de violência emocional.
Além disso, muitas famílias me relatavam que não sabiam como lidar com os curtos períodos de férias do filho ou da filha e, tampouco, como trazer de volta o sentimento de amor e de pertencimento da família sem que o jovem fosse violento e arredio em casa. Também não sabiam como evitar o monitoramento dos Arautos pelo celular dos seus filhos sem que isso gerasse brigas entre a família e o jovem. Por vezes, compartilhei com várias mães essas situações de desespero por telefone, podendo apenas oferecer palavras de conforto e de orientação para evitar situações de conflitos, uma vez que, nos Arautos, se ensina aos jovens que a família é seu principal inimigo, isto é, a “Fonte da Minha Revolução” (FMR), e que, se for necessário, é preciso matar os pais e as mães para se livrarem do pecado original.
Por isso, em todos os relatos, as famílias se sentiam enganadas com a falsa promessa de um futuro melhor para seus filhos como estudantes de um colégio internacional, para que por fim concluíssem que eles haviam sido chamados, na verdade, para serem escravos de João Clá.
A subserviência dos internos para com a instituição ficou nítida quando tive acesso aos diversos vídeos em que jovens levam tapas na cara durante sessões de exorcismo e em que são obrigados a fazerem voto de pobreza, castidade e obediência. Para além dessas violações, existe também a exploração que extrapola as paredes da instituição a partir da mão de obra dos internos, em que são levados a arrecadarem dinheiro para o Arautos do Evangelho sob o cumprimento de uma meta. Caso não consigam atingir o valor definido, são submetidos a sessões de humilhação.
Nesse ínterim, se tornou ainda mais evidente a lógica perversa da entidade quando fiz contato com a mãe de uma jovem de morte suspeita e compreendi que não só os jovens sofriam pela manipulação e pela violência do Arautos, mas também as mães eram constantemente coagidas e classificadas como loucas e paranoicas.
Em meados de agosto de 2019, já na posse de mais de seiscentas páginas de depoimentos, de Boletins de Ocorrência, de fotos, de atestado de óbito e de material dos conteúdos ministrados nas escolas, chamei a conselheira do Condepe Graça Mello, e membra da comissão de Direitos Humanos da OAB e, ao mesmo tempo, repassei todo o dossiê para as mais diversas mídias, uma vez que acreditava que a publicidade do caso era extremamente necessária.
Em setembro do mesmo ano, Graça Mello expôs a situação ao conjunto de conselheiros do Condepe e, ao final de setembro de 2019, entregamos um dossiê de 645 páginas não somente para a Defensoria Pública, ao Ministério Público, à OAB-SP e à Secretaria de Educação, com a presença de Ex-Arautos e familiares, como também, com o atual presidente do Condepe, Dimitri Sales, e a conselheira Graça Mello, a um emissário do Papa Francisco – no qual obtive informações que estaria no Brasil por intermédio de amigos.
Uma das intervenções significativas foi encaminhar os jovens ex-Arautos para serem ouvidos por especialistas na área da tortura do governo do estado de São Paulo e, assim, obter registro da violência emocional, bem como possibilitar que aproximadamente 12 vítimas entre as mães, pais e ex-Arautos, fossem ouvidas no Observatório de Direitos Humanos da Alesp.
Importante frisar que, durante esse período, fui chamada por algumas famílias da região do ABC Paulista que souberam da minha atuação para me perguntar se de fato era tudo verdade, pois suas filhas haviam sido escolhidas para fazerem parte dos Arautos do Evangelho. Com isso, consegui evitar que duas meninas fossem entregues à instituição.
Embora tenham ocorrido sucessivas vitórias significativas contra essa organização que viola o jovem e violenta a família, não é possível afirmar que chegamos a uma vitória final. A grande preocupação atual é como esses jovens vão ser devolvidos para suas famílias, considerando toda a destruição emocional, física e intelectual contra os internos da instituição. Não somente isso, como também as famílias precisam ser preparadas para receberem pessoas que não mais os reconhecem como pai, mãe, irmãos, e que não sabem mais viver para além dos muros da referida doutrina do Arautos do Evangelho.
Apesar disso, como afirmei durante essa jornada a uma das vítimas, “não solto suas mãos, pois posso não ter cargo que facilite essa luta, mas tenho um chamado a seguir”. Em outras palavras, a fim de cumprir o dever de quem atua na defesa dos Direitos Humanos, seguirei desvelando as violações de direitos e impedindo que outros jovens e famílias sejam novas vítimas.
Ressalto que os nomes das vítimas foram preservados nesse relato, para que não sofram qualquer ação de violência e, também, em respeito às dores que vivenciam cotidianamente.
*Solange Massari é assistente Social, mestre em Serviço Social e atuante na defesa dos Direitos Humanos.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.