No Brasil, quando o assunto é Comunicação, lamentavelmente, a História se repete. E sempre como tragédia. A escolha de Juscelino Filho, deputado federal pelo União Brasil do Maranhão, como Ministro das Comunicações do governo Lula é a triste confirmação de que este setor – tão estratégico para a democracia – funciona, mais uma vez, como moeda de troca política.
De imediato, dois fatos evidenciam a gravidade da indicação de um parlamentar do União Brasil para um Ministério de Lula: a) a sigla é a fusão do DEM e do PSL, o primeiro foi fundamental para o golpe contra a presidenta Dilma e o segundo foi o partido que abrigou a candidatura de Bolsonaro em 2018; b) e o União Brasil é o partido de ninguém menos que Sérgio Moro, protagonista da perseguição política a Lula, utilizando-se da politização do Judiciário, e eleito senador pelo Paraná.
O cenário é ainda mais dramático. Afinal, o União Brasil é uma espécie de clube que reúne políticos proprietários de radiodifusão. Apenas nas eleições deste ano, conforme pesquisa realizada pelo Intervozes, o partido teve 14 donos de mídia candidatos a cargos de governador, deputado(a) federal, deputado(a) estadual, senador e suplente de senador.
A respeito disso, vale mencionar o que estabelece o artigo 54 da Constituição Federal de 1988: “deputados e senadores não poderão, desde a expedição do diploma, firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público…”.
Televisão e rádio são concessões públicas, não custa lembrar! Portanto, a questão não é apenas sobre moralidade, mas sobre legalidade. Ou melhor, sobre a naturalização de uma prática ilegal.
Um parênteses: em 2015, o Partido Socialismo e Liberdade (Psol), com apoio do Intervozes, denunciou no STF o desrespeito ao artigo 54 da Carta Magna, através de uma Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Esta e outras ações já resultaram, por exemplo, na cassação ou cancelamento de concessões de radiodifusão.
O levantamento recente do Intervozes revelou também que o União Brasil teve, no processo eleitoral de outubro, quatro candidatos que utilizam de concessões públicas de rádio e TV para promoverem, através de programas com abordagens policialescas, violações de direitos humanos de negros(as), mulheres, crianças e pessoas LGBTQIA+.
Sabem o discurso fascista de “faz arminha” do bolsonarismo? Pois esses programas são plataformas privilegiadas de eco dessa perspectiva de justiça com as próprias mãos.
Um olhar para a história
E por que iniciei este texto fazendo referência à repetição da história como tragédia?
Porque seis décadas após a aprovação da legislação que ainda hoje regula o rádio e a TV abertas no país, o Código Brasileiro de Telecomunicações (em agosto de 1962), a barganha entra em cena quando os governos negociam como e com quem irão “tocar” as políticas de comunicação. Neste caso, o comando da pasta responsável não é nada dessemelhante.
Após nove anos de intensas negociações, o CBT chegou ao então presidente João Goulart cheio de imprecisões quanto a critérios de distribuição das concessões, dentre outros problemas. Ao analisar a legislação, Jango estabeleceu 52 vetos, todos derrubados em uma única sessão do Congresso Nacional, com forte participação da recém-criada Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e da bancada de radiodifusores
No pós-Ditadura Militar, apenas no governo Sarney 418 concessões de rádio e TV foram negociadas em troca de votos favoráveis no Congresso, como demonstrado por Othon Jambeiro em livro sobre a regulação do setor no país.
O professor conta também que, em setembro de 1988, um mês antes da promulgação da nova Constituição, embora um só canal de TV tivesse sido anunciado para concessão em determinada área geográfica, o então presidente concedeu quatro canais. “A razão foi que, ao invés de apenas um, quatro amigos do Presidente estavam concorrendo pela concessão. O Assessor de Imprensa do Ministério das Comunicações disse publicamente que na opinião do governo aqueles que mereciam a confiança do Ministro e do Presidente deveriam ganhar a concorrência. O próprio Presidente, quando interpelado por repórteres para explicar porque tinha autorizado quatro concessões, ao invés de uma, como previsto, disse que tinha sido difícil para ele deixar de atender” (Jambeiro, 2002, p. 141).
Já nos governos petistas anteriores, tanto nas gestões de Lula quanto de Dilma, o que se verificou foi uma profunda timidez em qualquer necessária medida de enfrentamento aos oligopólios midiáticos do país, com ministros ligados aos grupos de mídia, como Eunício Oliveira (ministro das Comunicações entre 2004 e 2005) e Hélio Costa (entre 2005 e 2010, quando atuou no projeto do Sistema Brasileiro de TV Digital).
Sim, foi criada a Empresa Brasil de Comunicação, projetando uma nova possibilidade de comunicação pública. Sim, o PT realizou (tardiamente) 1ª Conferência Nacional de Comunicação, em 2019. Naquele momento, reuniu, de forma inédita, órgãos públicos, empresários e sociedade civil em debates e proposições de políticas de comunicação para o setor. Foram aprovadas mais de 600 propostas, mas quase nada saiu do papel. Mas, o que efetivamente, foi alterado quando olhamos para a conivência entre Estado e Comunicações no Brasil?
Não há dúvidas sobre a importância de uma frente ampla na tarefa de reconstrução nacional. Os resultados apertados no primeiro e segundo turnos não devem criar ilusões sobre o país que temos nem sobre as dificuldades que estão por vir. Mas entregar à direita um Ministério fundamental para a promoção de uma cultura de direitos humanos e para a defesa da democracia, mesmo depois do alerta de centenas de entidades da sociedade civil, grupos de pesquisa e ativistas, representa uma derrota antes mesmo da posse presidencial. Me parece, em verdade, a principal derrota do campo progressista e democrático nestes últimos dias de 2022. Isso não significa, porém, dizer que o jogo acabou. Vai ter resistência. Sempre teve.
*Paulo Victor Melo é professor e pesquisador de Políticas de Comunicação. Investigador integrado do Instituto de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa, onde realiza pós-doutoramento. Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia. Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
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