Muitos podem dizer que Bolsonaro perderá a eleição para si próprio. E há nisso uma tragédia do tamanho do nosso abismo histórico, pois mesmo com todo o conjunto da obra nefasta do bolsonarismo nestes quase quatro anos que podem ser contados em séculos, é preciso reconhecer de modo estarrecido que alguns milhões de eleitores a mais até estariam dispostos a ainda votar nele se não fosse um ou outro limite pessoal atingido (talvez ter perdido alguém próximo para a Covid, talvez ter perdido o emprego, talvez ter descoberto a pilantragem de algum líder religioso, sabe-se lá). Dito de outro modo: ele até poderia ganhar a eleição se não fosse um estúpido.
Mas há também nisso uma injustiça. Porque essa eleição não será ganha por Lula apenas pelos erros de Bolsonaro (muitos deles cometidos até por não conseguir fazer o básico do que é orientado pela própria equipe, como ocasionalmente a imprensa noticia). Essa eleição será ganha também pelos acertos de Lula, aqui entendido não de modo personalíssimo, mas enquanto expoente de um movimento partidário e social que conseguiu sobreviver quando todos davam por aniquilado.
Se hoje quem preza a democracia, sociais liberais incluídos, têm a alternativa Lula para votar contra o projeto fascista do bolsonarismo, em muito se deve ao fato deste ter tido uma resiliência absurda, o que só foi possível em razão daqueles e daquelas que lotaram o entorno do Sindicato dos Metalúrgicos na véspera da prisão, que acamparam por dias e noites nas proximidades da sede da Polícia Federal em Curitiba, que organizaram atos “Lula Livre” por todo país. Por aqueles que, em resumo, não abandonaram a sua liderança histórica.
Fernando Morais ainda haverá de nos contar em detalhes toda esta saga na sequência da biografia de Lula. Mas, assim a quente, e às vésperas do pleito, não há como desconsiderar a magnitude política de ter, de volta, uma frente ampla pela democracia e, dessa vez, liderada por um ex-presidente reconhecidamente de esquerda e por um candidato a vice que demonstrou grandeza e perspectiva histórica.
Esta eleição é muito maior do que uma disputa entre Lula e Bolsonaro. É maior até do que uma disputa entre esquerda e direita. É um acerto de contas com uma redemocratização que deixou muitas pontas soltas, a ponto de ter visto viabilizar-se uma agenda de elogio à ditadura (que teria "matado pouco").
É a chance de uma nova transição, uma oportunidade de estruturar a nossa democracia, fazer cumprir o espírito da Constituição de 1988, reconhecer definitivamente que a nossa obra mais urgente é a inclusão social, e trabalhar para que para que o fascismo não volte a se criar.
A tarefa será muito árdua. Nem mesmo este grande feito da provável vitória do improvável Lula será o bastante diante de efeitos tão duradouros quanto haverão de ser aqueles do bolsonarismo (que se tornou maior do que aquele que lhe deu o nome). Não há ilusões quanto a isso. O governo Lula será dificílimo. E os próximos ao dele também.
O reacionarismo brasileiro tem dado assombrosas mostras de força, em associação com a exploração da fé, com o medo do rompimento de uma certa noção de família, com o ressentimento dos que temem perder privilégios e com os interesses estruturais de um capitalismo predatório.
Não tenho expectativa maior do que a de que o novo governo Lula venha a ser como o de um Sarney à esquerda, mas ainda assim essencial para recuperar algum projeto de país inclusivo, orgulhoso de si e com um ar respirável. E isso, diante do que temos visto, já terá sido uma dádiva. Que saibamos aproveitá-la para que o Brasil não volte a se perder de si.
*Vitor Menezes é Jornalista no Departamento de Comunicação do Sindipetro-NF e professor no Curso de Jornalismo do UNIFLU (Centro Universitário Fluminense).