No próximo domingo (30) terminam as eleições no Brasil e teremos, finalmente, a escolha do projeto político que será implementado no Brasil e nos estados que têm segundo turno. O candidato ao governo de São Paulo, Tarcísio de Freitas, fez discurso contra as câmeras corporais na farda da Polícia Militar de São Paulo e está ameaçando acabar com o programa que reduziu 77,37% de mortes por intervenção policial nos primeiros cinco meses de 2022, assim como reduziu o número de policiais mortos, que é o menor desde o início da série histórica, em 2001. A pergunta que não quer calar: A quem interessa acabar com a política que está reduzindo as mortes de jovens, negros e periféricos?
Ao analisar a questão da segurança pública no Brasil nos deparamos com uma série de contradições acerca da viabilização do Estado democrático e de direito. Primeiramente, porque a polícia surge no Brasil império a serviço das elites escravocratas para controlar e criminalizar negros escravizados, além de aprofunda suas características autoritárias com a padronização de métodos de repressão e a centralização das polícias estaduais sob o comando do Exército no período da ditadura militar, com legitimidade institucional para eliminar o inimigo (negros e comunistas). Nos dias atuais, as características, fruto desses processos históricos, persistem, visto que o processo de redemocratização não veio acompanhado da superação dessa herança autoritária. E, na atual realidade, esse inimigo é negro, jovem, pobre e morador da periferia.
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Em segundo lugar, fica evidente um conjunto de violações de direitos contra uma parcela específica da população, historicamente marginalizada, quando a política de segurança pública é seletiva. Sendo assim, para uma parte da população representa segurança e para outra parte da população significa violação de direitos fundamentais como o direito à vida, à integridade física e moral da categoria dos direitos individuais, e o próprio direito à segurança pública da categoria dos direitos sociais. Nessa esteira, o Estado, que deveria ser garantidor de direitos, se torna violador de direitos quando se trata da questão da segurança pública. Paralelamente, esse mesmo Estado é ausente quando se trata da garantia dos direitos sociais como educação, saúde e moradia.
No primeiro semestre de 2020, em São Paulo, as polícias civil e militar mataram, somadas, 514 pessoas em decorrência de intervenção policial, representando um aumento de 20% em comparação ao mesmo período no ano anterior, número recorde de mortes mesmo durante a pandemia e o isolamento social. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 78,9% das vítimas da letalidade policial são negras. Portanto, é necessário enfrentar esse tema observando o racismo sofrido pela população negra, que é normalizado através da estrutura social, econômica, política, cultural e jurídica no nosso país.
Vale destacar que a utilização de câmeras corporais no fardamento da polícia é recente no Brasil, mas essa tecnologia vem sendo testada e implementada desde os anos 2000, a exemplo do Reino Unido e Dinamarca. E, a partir da experiência estadunidense, há um movimento crescente de implementação dessa política no mundo, especialmente a partir de 2015, quando o presidente Barack Obama realizou um investimento de mais de US$ 23 milhões para a compra de 50 mil câmeras para ampliar o programa piloto, com objetivo de melhorar a relação entre polícia e comunidade, sendo os pioneiros a implementar as câmeras corporais de forma massiva.
O governo do estado de São Paulo iniciou em março de 2021 o uso de 2.500 câmeras corporais no uniforme da Polícia Militar, através do programa chamado “Olho Vivo”. Atualmente, existem cerca de 10.125 câmeras em operação, com perspectiva de ampliação até o final do ano. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, houve uma queda de 30% no total de vítimas da letalidade policial, um resultado relevante das medidas tomadas desde 2020. E quando se comparam os dados entre os batalhões com câmera aos batalhões que não implementaram o dispositivo, se observa uma queda de 63,6% e 77,4% nos batalhões com câmera, no terceiro e quarto trimestre de 2021, respectivamente. Enquanto que nos batalhões que não implementaram as câmeras se observa um crescimento de 9,1% e 10,9% no mesmo período.
Ao longo de 2021, houve uma redução geral nos índices de letalidade policial no estado de São Paulo, mesmo nos batalhões que não implementaram as câmeras. Mesmo a redução sendo mais significativa nos batalhões que aderiram ao programa “Olho Vivo”, que caiu em 47% o número de mortes por intervenção policial, contra uma queda de 16,05% nos demais batalhões. Isso se justifica pelo fato de a Polícia militar de São Paulo ter adotado uma série de medidas, com objetivo de reduzir o uso da força, pois as câmeras, por si só, não são suficientes para reduzir a letalidade, embora tenham um papel relevante. Por isso, a diminuição foi dez vezes maior nos batalhões com câmera se comparada com as unidades que não utilizam o equipamento.
Nesse sentido, foram tomadas medidas como a Comissão de Mitigação de Não Conformidades, que tem como objetivo identificar não conformidades e ajustar protocolos de atuação e procedimentos operacionais padrão para serem difundidos nas escolas de formação e treinamento. Além disso, mecanismos de supervisão e disciplina, reforço do Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar, aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, dentre outras medidas que foram tomadas. Portanto, os resultados positivos são uma consequência desse conjunto de medidas articuladas com o uso das câmeras corporais.
Ainda temos muita estrada para chegar numa política de segurança cidadã, que não viole os direitos humanos e que seja antirracista. Mas, sem dúvida, a proposta de Tarcísio representa um enorme retrocesso e um ataque às vidas negras, tanto porque objetivamente todos resultados apontam para uma redução nos índices de letalidade, quanto porque, simbolicamente, o recado que ele passa para o povo é que seu governo dará licença para matar. Para Tarcísio, vidas negras não importam. Por isso, vamos derrotá-lo dia 30 de outubro.
*Jessy Dayane é pesquisadora na FGV-Direito SP.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.