Por Waldeck Carneiro*
Em 19 de agosto de 2004, teve início o massacre da Sé, em São Paulo, quando pessoas que viviam em situação de rua foram brutalmente agredidas: sete morreram e seis ficaram com sequelas irreversíveis. Em memória às vítimas, a data se tornou Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua. Cerca de um ano antes, na Igreja da Candelária, no Rio, dezenas de pessoas que dormiam nas suas proximidades foram baleadas: oito mortos (seis menores) e dezenas de crianças e adolescentes feridos.
A violência é o drama cotidiano de quem vive a situação já dramática de morar na rua, sob marquises e viadutos. Episódios de “assepsia social” praticada contra pessoas em pobreza extrema ou miséria continuam, pois ainda há quem prefira descartá-las, como lixos em forma de gente, a enfrentar com políticas públicas as razões estruturantes da desigualdade e da exclusão.
A existência de pessoas em situação de rua significa clara afronta ao Estado de Direito, visto que a habitação é direito escrito em nossa Constituição. Além disso, o direito à moradia é um direito humano. Afinal, é condição de humanização viver sob um teto, protegido das intempéries, diferentemente de animais, exceto os aprisionados em jaulas ou compartimentos fechados ou os adotados por humanos, muitos tratados com mais atenção, carinho e dignidade do que as crianças pobres ou miseráveis que perambulam sem destino pelas ruas. Aqui a distorção não é acolher e cuidar dos animais, mas a situação inaceitável de conviver com pessoas em situação de rua, naturalizando-as e passando por cima delas, como se fossem obstáculos físicos a serem transpostos no cotidiano citadino.
Com o golpe de 2016, o quadro de desigualdade se aprofundou no Brasil: retornamos ao mapa da fome, o desemprego se acentuou (o RJ é campeão nacional no quesito), a miséria e a extrema pobreza voltaram a povoar ruas, parques e praças. A pandemia tornou tudo pior e ainda submeteu essas pessoas a riscos mais elevados: quantas morreram de Covid-19, como indigentes, sem a devida notificação? No caso do RJ, há preocupações sanitárias adicionais, como a transmissão da tuberculose, doença muito presente no território fluminense, sobretudo em ambientes insalubres e miseráveis.
Como resposta a tão grave problema social, foi instituída em 2009 a política nacional para a população em situação de rua, focada na prestação de serviços públicos e na garantia de direitos. A instituição da política nacional foi um avanço, mas em 2016 os dados do Censo SUAS/CadÚnico ainda estimavam quase 102 mil pessoas vivendo em situação de rua no Brasil. Nos últimos cinco anos, seguramente esse número aumentou, dado o crescimento vertiginoso da desigualdade e da exclusão.
Na Alerj, em junho de 2021, conseguimos aprovar projeto que criou a política estadual para a população em situação de rua. Agora, a pressão é sobre o governador para que a lei já sancionada saia do papel, assegurando dignidade, direito à convivência familiar e comunitária, respeito à vida e à cidadania das pessoas em situação de rua. Também está em curso uma comissão especial, que tem ido ao encontro das pessoas que vivem na mais absoluta pobreza e dialogado com governos locais em busca de soluções.
Viver na rua para seres humanos é fator de desumanização. Urge, pois, que os poderes públicos desencadeiem ações coordenadas em áreas como saúde, assistência social, segurança alimentar, educação e moradia para restaurar a condição humana daquelas pessoas. Não há democracia nem desenvolvimento sem derrotar a lógica neoliberal de que inevitavelmente há sobrantes, que não cabem nas políticas públicas, no orçamento público e na legislação. Ideais humanistas, solidários e altruístas, bases de uma sociedade igualitária, devem prevalecer sobre a ideia da exclusão como fatalidade histórica.
*Waldeck Carneiro é professor da UFF e deputado estadual (PT-RJ).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum