Obrigação do Estado na Chacina do Jacarezinho: ouvir os mortos – Por Pedro Montenegro

O reconhecimento do direito à investigação como direito das vítimas e/ou de seus familiares obriga as instituições do sistema de justiça e segurança ao dever de ouvir os mortos

Foto: Vatican News (Reprodução)
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Por Pedro Montenegro *

Nos últimos dias, em meio à indignação da sociedade brasileira acerca da chacina do Jacarezinho, ocorreram diversas manifestações, todas indispensáveis para criação de um ambiente que favoreça a inadiável reforma do sistema de segurança pública no país.

Nesse artigo, me junto a essa ampla coalização civilizatória, refletindo sobre a Chacina do Jacarezinho, com base na experiência do monitoramento das investigações da Chacina do Complexo do Alemão de 2007, que vivenciei na condição de chefe da Ouvidoria Geral da Cidadania da SEDH/PR.

Ao tomar conhecimento da chacina de Jacarezinho, que infelizmente se soma ao extenso rol de chacinas praticadas pelas polícias brasileiras, constituindo-se, como classificou Rupert Colville, porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos, “um ciclo vicioso de violência letal”, instantaneamente rememorei a chacina ocorrida em junho de 2007, no Complexo do Alemão, e que terminou com 19 mortos e 13 pessoas feridas.

Identifiquei em ambas as chacinas traços comuns em relação à motivação das operações policiais, às características das vítimas, à situação socioeconômica da região, palco da ação policial, do desprezo da boa técnica policial, do rarefeito controle externo da atividade policial e do desrespeito às normas de preservação do local de crime.

Destaco das particularidades observadas nas duas chacinas a “guerra às drogas” como motivação para a realização das operações policiais, o perfil das vítimas interseccionado pelas categorias de raça, a negra, de classe, os pobres e de gênero, o masculino e o tênue controle externo da atividade policial.  

De inspiração estadunidense, a política de “guerra às drogas” dá contornos claros ao racismo estrutural brasileiro, desvelado no conjunto de práticas discriminatórias, institucionais, históricas e culturais do aparato da segurança pública no país. Neste sentido, os dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública assinalam que no Brasil 79% das vítimas letais de intervenção policial em 2019, em geral durante operações com o fundamento da “guerra às drogas”, eram negras.

Ademais, não obstante o imensurável custo social das vidas ceifadas e dos sofrimentos incalculáveis impostos a milhares de brasileiros, as políticas proibicionistas, no mundo inteiro, vem se demonstrando ineficazes para reduzir a produção, a venda e o consumo de determinadas drogas, ao contrário, alimentam um vertiginoso mercado ilegal global altamente lucrativo, sobrecarregando os orçamentos públicos com os altos custos da repressão armada e do superencarceramento.

Nesta direção, recente relatório intitulado “Um tiro no pé: Impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo” lançado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, sob a competente coordenação geral da socióloga Julita Lemgruber, apontou que somente nesses dois estados, em 2017, o investimento na guerra às drogas foi superior a R$ 5 bilhões.

Outra questão comum que se sobressai nas duas chacinas é o controle externo da atividade policial. Uma das bandeiras das manifestações de junho de 2013, a atividade privativa do Ministério Público, conforme disposto na Constituição Federal no art. 129, inciso VII, na prática tem corroborado com os números alarmantes de brasileiros mortos em intervenções policiais, ou seja, está sendo inefetivo.

Sem o enfretamento do racismo estrutural, da política de guerra às drogas e da questão do controle externo da atividade policial, os nós górdios do sistema de justiça e segurança pública, seguiremos presos a esse “ciclo vicioso de violência letal”, a que se referiu o porta-voz da ONU e em mora com as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil.   

Aliás, os instrumentos internacionais de direitos humanos obrigam, no caso de violações desses direitos, o Estado brasileiro à tríplice obrigação de realizar uma investigação idônea, de reparar os danos e de adotar medidas para evitar a repetição das violações, ou seja, o dever do nunca mais.

O reconhecimento do direito à investigação como direito das vítimas e/ou de seus familiares obriga as instituições do sistema de justiça e segurança ao dever de ouvir os mortos.

Na nossa experiência do monitoramento da chacina do Complexo do Alemão verificamos que a atuação de uma equipe de peritos forenses independentes, produzindo relatório pericial referenciado em documentos internacionais, a exemplo dos “Princípios para a Prevenção e a Investigação Eficaz de Execuções Extralegais, Arbitrárias e Sumárias da Organização das Nações Unidas”, foi vital para a busca da verdade real, assegurando que as vozes dos mortos pudessem ecoar nas investigações.

O consagrado jurista argentino, Eugenio Raúl Zaffaroni, em sua obra A Questão Criminal ressalta: “A única verdade é a realidade, na criminologia a única realidade são os cadáveres. Sabemos que os cadáveres nos dizem que estão mortos. A criminologia, porém, não os escutou. Comecemos, pois, a escutar os mortos onde eles existem em grande número, nos assassinatos pelos Estados.”

*Pedro Montenegro é advogado e foi chefe da Ouvidoria Geral da Cidadania da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República no governo Lula.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.