Por Estevan Mazzuia *
18 de maio de 2020: João Pedro Mattos, de 14 anos, é morto a tiros dentro de casa na região metropolitana do Rio de Janeiro, durante uma operação policial. João era negro.
2 de junho de 2020: Miguel Otávio Santana da Silva, de cinco anos, entra em um elevador, depois de sua mãe, empregada doméstica a serviço de Sarí Corte Real, sair para passear com o cachorro da família. O menino chorava sentindo falta da mãe, e Sarí, primeira-dama de Tamandaré/PE, que “cuidava” da criança, a pedido da empregada, mandou o elevador para o nono andar. Minutos depois, o pequeno cairia de uma altura de 35 metros, num último voo ao encontro do que deve ter acreditado ser sua mãe, lá embaixo. Miguel era negro.
19 de novembro de 2020: João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, é assassinado por asfixia, depois de ser brutalmente agredido por dois seguranças de um mercado em Porto Alegre, após um desentendimento no interior da loja. João era negro.
6 de maio de 2021: uma desastrosa operação policial leva 29 pessoas à morte. Entre elas, Cleiton da Silva Freitas Lima, de 27 anos, executado com três tiros, depois de ser baleado na perna e Jonathan Araújo da Silva, entregador de mercado, executado a caminho da casa da namorada. Ao que se sabe até agora, o “crime” de ambos foi terem nascido com a pele negra.
Infelizmente, essas foram apenas algumas consequências do racismo estrutural no Brasil, nos últimos 12 meses. Vale lembrar, ainda, que 71% das 8 milhões de pessoas que perderam o emprego entre o primeiro e o segundo trimestres de 2020 eram negras. E que a mortalidade de covid-19 é 60% maior entre os negros.
Na semana passada, em que falei sobre a chacina do Jacarezinho, fiz menção a um samba da Mangueira, de 1988. E dois dias depois, na última quinta-feira, 13 de maio, decidi que aquele desfile mereceria ser enfocado na coluna de hoje.
Em 1988 algumas escolas de samba resolveram abordar o centenário da abolição da escravatura. Bicampeã em 1986/87, a Estação Primeira de Mangueira encerrou o desfile das 16 escolas do grupo especial do Rio de Janeiro já na manhã do dia 16 de fevereiro, com o enredo “Cem anos de liberdade: realidade, ou ilusão?”, desenvolvido por Júlio Mattos, o carnavalesco então bicampeão.
Ao contrário da maioria dos demais enredos, que encontraram motivos para uma grande celebração, a verde-e-rosa provocava um forte questionamento, traduzido nos versos de Hélio Turco, Jurandir e Alvinho, magistralmente puxados (sim, puxados!) por Jamelão:
“Será que já raiou a liberdade / Ou se foi tudo ilusão
Será, oh, será / Que a lei áurea tão sonhada / Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão
Hoje dentro da realidade / Onde está a liberdade / Onde está que ninguém viu
Moço / Não se esqueça que o negro também construiu / As riquezas do nosso Brasil
Pergunte ao criador / Quem pintou esta aquarela
Livre do açoite da senzala / Preso na miséria da favela
Sonhei / Sonhei que zumbi dos palmares voltou, ôô
A tristeza do negro acabou / Foi uma nova redenção
Senhor, oh, Senhor! / Eis a luta do bem contra o mal (contra o mal)
Que tanto sangue derramou / Contra o preconceito racial
O negro samba / O negro joga a capoeira
Ele é o rei na verde e rosa da Mangueira”
Pra mim, um dos sambas mais lindos que já passaram pela Sapucaí, se não o mais lindo, e não se fala mais nisso!
Ainda fico arrepiado ao lembrar da arquibancada respondendo à escola: Senhor... “oh senhor”!
Quinze negros integravam a comissão de frente: Milton Gonçalves, Ruth de Souza, Adhemar Ferreira da Silva, João do Pulo, Djavan, Grande Otelo, e Carlos Cachaça, fundador da escola, aos 85 anos, entre outros.
Viúva de Cartola, Dona Zica desfilou sentadinha no carro abre-alas, obedecendo a recomendações médicas.
Lobão tocou tamborim na bateria “surdo-um” comandada por Taranta e Birinha, filho de Padeirinho, baluarte da escola.
Lilico e Mocinha formavam o casal de mestre-sala e porta-bandeira.
Com 5300 componentes distribuídos por 53 alas e 11 alegorias, a escola mostrou a transposição dos negros arrancados da África para o Brasil, onde foram escravizados, a casa grande e a senzala, os ciclos econômicos da cana, do ouro e do café, nos quais o negro teve participação fundamental. Tânia Índio do Brasil, primeiro destaque feminino da escola, representava o ciclo do café.
As demais alegorias aludiam ao sincretismo religioso, aos orixás, às artes negras, às festas populares, como o Maracatu, além de um carro em louvação à Princesa Isabel. Talvez o desfile da Mangueira tenha sido o primeiro a questionar os efeitos da Lei Áurea ao longo daqueles 100 anos, mas as circunstâncias que levaram a princesa a assiná-la, ainda eram uma espécie de tabu.
Mangueirenses de carteirinha, Alcione, Terezinha Sodré e Rosemary, com o parceiro Gargalhada, marcaram presença.
A penúltima alegoria fazia alusão ao carnaval, trazendo o passista Serginho do Pandeiro, e Delegado e Nininha Chochoba, mestre-sala e porta-bandeira da escola entre 1943 e 1953. Ele exerceu a função por 36 anos, ela por 14. Mas Nininha também é lembrada como uma grande pastora da escola.
Encerrando o desfile, a realidade do negro, à procurada da real liberdade, “livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela”.
A escola “quicou” na avenida, num verdadeiro espetáculo de evolução, e arrastou centenas de foliões ao final de seu desfile.
O tri não veio, porque houve uma “Kizomba” de Vila Isabel pela frente, que um dia pretendo abordar por aqui.
Mas o questionamento mangueirense repercutiu, e ainda hoje repercute, 33 anos depois. Diante dos eventos narrados no início deste texto, sou obrigado a concluir que a resposta à pergunta título do enredo, indubitavelmente, é: ilusão!
Aliás, vale sempre lembrar das manifestações de Sérgio Nascimento de Camargo, jornalista que, desde 2019, preside a Fundação Cultural Palmares, que deveria se prestar à promoção da cultura afro-brasileira.
Em 30 de abril de 2020, ele referiu-se à mãe-de-santo Adna dos Santos, como “uma filha da puta de uma macumbeira” (sic).
Para Camargo, a escravidão é que é uma grande ilusão, o movimento negro é uma “escória maldita”, e o racismo inexiste no Brasil. Em suas palavras, “a negrada daqui reclama porque é imbecil e desinformada pela esquerda”
Insatisfeito, Sérgio afirmou, ainda, que "o Dia da Consciência Negra é uma vergonha e precisa ser combatido incansavelmente até que perca a pouca relevância que tem e desapareça do calendário", e que “a escravidão foi benéfica para os descendentes”.
Sérgio Camargo sente-se à vontade para manifestar sua opinião, porque sabe não estar sozinho. O que é, por si só, assustador, ganha contornos de surrealismo ao nos darmos conta de que Sérgio é... negro!
133 anos depois, o Brasil é um país onde se pode afirmar, com naturalidade, não ser racista, porque “até já apertei a mão de um negro”, “já até tirei foto com um negro” ou “até tenho um amigo negro”. Não vai passar vergonha não. Vai parecer descolado.
Depois de dizer que quilombolas se pesavam em arrobas e não serviriam nem para procriar, JB, o racista, adotou Hélio Fernando Barbosa Lopes, o Hélio “Negão”, como seu papagaio de pirata portátil. Não há uma aparição pública do “desprezidente” em que o pseudodeputado não esteja um passo atrás, para garantir o selo “não-racista” ao seu amo racista.
Quantas gerações precisaremos para que possamos finalmente abrigar os negros em nossa sociedade? Para que as portas que se abrem aos brancos não se fechem aos negros, como tantas ainda de fecham?
O que é preciso para que reconheçamos os privilégios que gozamos, sem compartilhar com os descendentes daqueles que foram chicoteados por nossos ancestrais, para ajudar a construir as riquezas de nosso Brasil?
Quanto tempo será preciso para que libertemos nossos irmãos da miséria da favela, e para que o preconceito racial deixe de ser uma ferida social e passe a ser apenas um triste capítulo nos livros de história?
Infelizmente, talvez cheguemos ao bicentenário da abolição da escravatura sem grandes transformações estruturais.
Até lá, sonharei, como a Mangueira de 88, com a volta de Zumbi dos Palmares, com o fim da tristeza do negro, com uma nova redenção.
Que assim seja!
*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.