Lei de Segurança Nacional e herança do Regime Militar – Por João Paulo Martinelli

Com o advento da Constituição Federal de 1988, a denominada “Constituição Cidadã”, a pessoa humana é mais importante que os interesses do Estado. Isto é, o Estado deve existir para a pessoa, e não o contrário

Foto: Arquivo Nacional
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Por João Paulo Martinelli *

Nunca se falou tanto da Lei de Segurança Militar desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Além do inquérito policial que prossegue no STF, para apurar supostos crimes contra as instituições democráticas, várias requisições foram feitas pelo Ministério da Justiça para investigar críticos do governo federal. Apesar da demora, recentemente o Congresso Nacional desengavetou o projeto de 2002 que revoga a famigerada lei e insere novos delitos contra o Estado Democrático de Direito no Código Penal. Enquanto isso não acontece, a mordaça continua em quem ousa manifestar suas opiniões.

A Lei de Segurança Nacional apresenta diversos problemas que a tornam incompatível com a atual Constituição. O objetivo do diploma legal é proteger as instituições do Estado e as respectivas autoridades, em especial os chefes de poder. Sua precária redação traz diversos tipos penais abertos, ou seja, descrições vagas de crimes que permitem incluir todo tipo de comportamento indesejado como, por exemplo, atentado à ordem institucional. Em outras palavras, os crimes contra a segurança nacional podem ser qualquer coisa que a autoridade policial quiser, desde uma mera opinião até comportamentos realmente perigosos.

E é aí que reside o perigo. É princípio do direito penal que os tipos penais descrevam comportamentos de maneira a delimitar sua aplicação e evitar autoritarismo no uso do poder punitivo. Ademais, a lei penal ampla, sem limites, favorece sua utilização para perseguição de adversários. O principal exemplo é a utilização dos crimes de calúnia e difamação para perverter o exercício do direito à livre manifestação, garantido constitucionalmente, quando há crítica desfavorável ao chefe da nação. Deve-se ressaltar que é essencial para configurar crime contra a Segurança Nacional a criação de um perigo para o funcionamento das instituições ou o desequilíbrio entre os poderes da República.

A manifestação de uma opinião crítica pode ser exacerbada e efetivamente ofender a honra de uma autoridade. No entanto, colocar em risco a soberania do Estado é algo completamente diferente. Quando alguém, não importando sua posição, sentir-se insultado com o ponto de vista manifestado por outrem, pode acionar a Justiça nas esferas criminal ou civil. Nesse caso, não é republicano usar órgãos da administração pública, como a Polícia Federal, para satisfazer interesses próprios. O ofendido deve agir como qualquer outro cidadão: contratar um advogado, apresentar a queixa-crime e apresentar as provas necessárias no processo.

Distorcer a lei para ameaçar a liberdade de expressão e intimidar críticos deve ser encarado como abuso de autoridade. É verdadeiro desvio de função colocar o aparato estatal a serviço de interesses privados. Fica clara a arbitrariedade no uso da Lei de Segurança Nacional quando não há qualquer indício de perigo ao Estado Democrático de Direito, requisito exigido pela norma aplicada. Para a referida lei ser aplicada, deve existir perigo real à “integridade territorial e à soberania nacional”, ao “regime representativo e democrático, à Federação e ao Estado de Direito” ou à “pessoa dos chefes dos poderes da União”. A exorbitância do uso do poder é cristalina quando se considera uma opinião ou uma ofensa um risco efetivo à integridade ou vida do presidente da República.

Num regime ditatorial, como foi o período de governo dos militares, a liberdade de expressão é reduzida e controlada, distintamente de uma democracia. Com o advento da Constituição Federal de 1988, a denominada “Constituição Cidadã”, a pessoa humana é mais importante que os interesses do Estado. Isto é, o Estado deve existir para a pessoa, e não o contrário. As leis penais podem ser aplicadas apenas quando um comportamento for altamente reprovável e colocar em risco um interesse individual ou coletivo. Espera-se que o Congresso Nacional revogue logo essa herança da tirania vivida pelo país.

*João Paulo Martinelli é advogado, mestre e doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra e professor do IBMEC.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.