Por Ana Beatriz Prudente, Gabrielle Cristine Avelino, Gustavo Carvalho Galvão Machado da Silva, Thaís Torres Bahia e Thiago Marques *
Este artigo se propõe a realizar uma cronologia sobre a igualdade de gênero conforme o texto contido nas constituições de 1934, 1946 e 1988. Na análise, consideramos o contexto histórico no qual essas cartas foram estruturadas, além dos aspectos políticos, econômicos e sociais que nortearam a elaboração delas. Optamos pelo olhar comparativo, uma vez que se objetiva observar o aspecto evolutivo da matéria constitucional relacionada à superação da desigualdade entre os gêneros feminino e masculino. Trataremos, portanto, da conduta jurídica dada às mulheres pelas constituições federais ao longo dos anos, destacando os avanços da luta feminina.
A Constituição Federal de 1988 foi um marco não só para a transição e consolidação da democracia brasileira, mas também para a promoção da igualdade de gênero. Em seu artigo 5°, inciso I, ficou expressamente reconhecido que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, sendo que a igualdade, nesse contexto, não se limita somente ao seu aspecto formal – que reconhece todos os indivíduos como sujeitos de direito -, mas também ao seu aspecto material, ou seja, garantindo direitos e políticas públicas que atenuem assimetrias sociais, assegurando a igualdade de oportunidades para o pleno desenvolvimento de suas capacidades.
Como exemplo de promoção de igualdade material, no capítulo que trata dos direitos sociais, destacamos, entre outros, a proteção à maternidade (artigo 6°, caput), a implementação da licença-gestante (artigo 7°, XVIII); a proibição da diferença de salários, de exercícios de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor e estado civil (artigo 7°, XXX).
Destaca-se, ainda, que o reconhecimento de igualdade de gênero pela Constituição Federal de 1988 fez com que o Novo Código Civil substituísse o nome do conjunto de direitos e deveres dos pais sobre os filhos de “pátrio poder” para “poder familiar”, haja vista que, por sua origem, a palavra “pai” tem raiz expressamente patriarcal e não demonstrava o importantíssimo papel da mulher na educação dos filhos, sendo que o referido conceito deveria expressar a igualdade de condições entre pai e mãe, em respeito à Constituição Federal.
O reconhecimento da igualdade de gênero como direito fundamental, previsto na Constituição Federal de 1988, fez com que o estado brasileiro se comprometesse a erradicar todas as formas de violência e discriminação contra mulheres cis e transexuais. Vale ressaltar, também, que é dever do Estado brasileiro enquanto Estado Democrático de Direito, promover a igualdade de grupos vulneráveis e combater tais desigualdades, sendo a Lei Maria da Penha um exemplo de instrumento para o reconhecimento da necessidade de proteção aos grupos historicamente oprimidos.
Previamente à Constituição de 1934 – a primeira a ser estudada nesta análise – observemos o contexto da Constituição de 1891, que inaugura a República Federativa do Brasil. Esta foi responsável por marcar a transição do regime monárquico para o republicano e iniciar uma nova ordem constitucional em consonância com a nova realidade desejada para o país. Ela também trouxe avanços significativos em relação à nova estrutura do governo, como por exemplo, a institucionalização do sistema presidencialista e a separação entre o estado e a Igreja. No entanto, pouco se dispôs a tratar da igualdade de gênero no Brasil.
Neste ponto específico, a constituição da época considerava os seguintes cidadãos como eleitores: “Art 70 - São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei.” Mesmo não explicitamente, o sufrágio feminino, ou seja, a possibilidade da concessão do voto às mulheres, nem era considerada. Assim, não havia preocupação em excluir as mulheres, já que elas não eram nem mesmo declaradas aptas a exercerem sua cidadania, por meio de sua força política. Além disso, é notável que, ao se buscar o substantivo “mulher” no texto da constituição mencionada, há um completo silêncio, não sendo citado nenhuma vez.
Dessa forma, apesar de ser uma constituição de viés fortemente liberal, não trouxe grandes avanços em relação às mulheres. É preciso lembrar que a República brasileira foi marcada por um forte patriarcalismo.
Segundo dados atuais, coletados em 28 de fevereiro de 2018 pelo Inter-Parliamentary Union, o Brasil possui apenas 55 mulheres atuando na Câmara dos Deputados, de um total de 513 membros. Os números absolutos equivalem a 10,72% do total de parlamentares da casa. Em 2019, conforme o Mapa Mulheres da Política realizado pela ONU, o Brasil ocupava a posição de 149 em um ranking de representatividade composto por 188 países.
Ao analisar esses dados e a trajetória do Brasil enquanto nação, percebe-se que a mentalidade brasileira ainda está muito atrelada à Constituição de 1891, a qual considerava a mulher totalmente alheia aos assuntos políticos. A nossa República nasceu com a presença marcante da desigualdade de gênero e, mais de cem anos depois, ainda encontramos os reflexos dessa consciência ao olhar os dados da sub-representação feminina na política.
Em contrapartida ao texto legal anterior, a Constituição de 1934 traz um pequeno avanço em relação aos direitos das mulheres. Este documento foi construído sob uma nova conjuntura histórica: em meio ao governo de Getúlio Vargas, como corolário da Revolução Constitucionalista de 1932, cujo objetivo era a derrubada do governo à época e a criação de uma nova constituição, a qual só havia adotado medidas de caráter transitório. Essa Constituição herda o liberalismo das formulações da Constituição de 1891: além de garantir as já declaradas seguranças individuais, também as amplia. Um movimento, segundo Paulo Bonavides, pautado na tentativa de estabelecer um Estado social, por meio da concessão de uma dimensão nova aos direitos individuais.
De início, a constituição mencionada traz o termo “mulher” ou “mulheres” quatro vezes. Logo, há um visível crescimento, se comparado ao texto de 1891. Nesse sentido, é fixado na lei magna brasileira o direito de voto das mulheres em no seu artigo 108, transcrito abaixo: “Art 108. São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de 18 anos, que se alistarem na forma da lei.” Ressalta-se que não houve propriamente uma inovação, considerando a legislação brasileira em sua totalidade, posto que, o direito das mulheres ao voto foi conquistado em 24 de fevereiro de 1932, por meio do decreto nº 21.076, no Código Eleitoral: “Art. 2º E' eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código”. Contudo, é inegável o avanço trazido pela nova constituição, dando maior destaque aos direitos femininos. Aqui, é importante ressaltar que o sufrágio era facultativo, obrigatório apenas às mulheres que exerciam serviço público, nos termos do artigo 109.
Outra consideração necessária é o fato de que o voto feminino não foi concedido pelas instituições políticas da época, mas sim, resultado de um trabalho árduo de grupos feministas organizados no Brasil e ao redor do mundo, devendo ser encarado como conquista das mulheres em razão de sua luta pela igualdade. Devemos destacar que o movimento sufragista feminino estava em ascensão na Europa, especialmente na Inglaterra. Trata-se de erro histórico entender que o direito de voto foi concedido às mulheres, visto que tal premissa ignora frontalmente os fatos e a luta dos movimentos sociais organizados à época, com a influência de correntes filosóficas como o socialismo e o comunismo.
Além disso, após “entrar para a vida cívica”, as mulheres também conquistaram seus direitos políticos e puderam ocupar cargos de deputadas ou senadoras. Este direito foi destacado pelos artigos 26 e 30 da Constituição. Traziam como requisitos a esses cargos ser cidadão brasileiro e alistado como eleitor, algo também citado no artigo 73: “Os cargos públicos civis ou militares são acessíveis a todos os brasileiros, observadas as condições de capacidade especial que a lei estatuir, sendo, porém, vedadas as acumulações remuneradas.”
Também merece destaque o artigo 113, 1, da constituição, que demonstra um avanço exponencial na luta pela igualdade de gênero no país, ao afirmar que todos são iguais perante a lei, inexistindo privilégios ou distinções por conta de nascimento, sexo, raça, profissão, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideias políticas. Embora entendamos hoje que tal fato faz parte das bases democráticas em um estado de direito, é importante lembrar que a Constituição anterior sequer considerava a mulher um sujeito apto à vida política.
É possível, ainda, afirmar que a legislação trabalhista tratada na Constituição Federal de 1934 é relativamente extensa, um grande marco para os trabalhadores brasileiros, especialmente para as mulheres: pela primeira vez, proibiu-se a diferença salarial por motivo de sexo, tópico de extrema relevância em um período entre guerras em que as mulheres passaram a se lançar – por vontade ou obrigação – no mercado de trabalho. As mulheres também foram beneficiadas com a proibição do trabalho em indústrias insalubres.
Mais adiante, temos a Constituição de 1946 que foi promulgada após a 2ª Guerra Mundial. A vitória dos Aliados trazia consigo uma divergência com o modelo de estado vigente até então no Brasil, o Estado Novo, uma ditadura que guardava maior relação com os modelos fascistas do Eixo. Desse modo, ela foi responsável por restaurar as origens liberais das constituições brasileiras, guardando maior relação com a CF/34 (anterior ao Estado Novo) quando comparada à sua predecessora, CF/37 (instituidora do Estado Novo). Analogamente, essa semelhança se deu também no âmbito da igualdade de gênero – direitos políticos, econômicos e sociais.
Apesar de tratarmos de um pequeno lapso temporal e de poucas conquistas para o movimento feminista, analisar o direito das mulheres em épocas de instabilidade política é essencial. Isso porque é sabido que, em tempos difíceis, como o período entre guerras, os direitos das minorias são contestados, de forma que a manutenção do posto de cidadã, com direitos e deveres iguais perante a lei e com oportunidade de votar, já é uma grande conquista.
Um fato inovador nesta constituição, no entanto, é que o voto feminino deixou de ser opcional e se tornou obrigatório. Tal obrigatoriedade foi mitigada posteriormente, com Código Eleitoral de 1950: “Art. 4º O alistamento e o voto são obrigatórios para os brasileiros de um e outro sexo, salvo: d) as mulheres que não exerçam profissão lucrativa.” Os direitos econômicos das mulheres também foram mantidos, com a proibição do pagamento de salário inferior para mulheres em razão de sexo.
Além disso, a mulher como agente econômico ganha maior valorização no contexto social, uma vez que os homens são designados para lutar em nome de seus respectivos países. Assim, as mulheres acabaram por se tornarem peças essenciais na manutenção da atividade econômica, fortalecendo ainda mais o movimento feminista e a necessidade de luta e manutenção dos direitos adquiridos ao longo dos anos.
Por fim, chega-se até a Constituição Federal de 1988, atual texto legal válido no Brasil. Um marco não só para a transição e consolidação da democracia brasileira, mas sobretudo para a promoção da igualdade de gênero.
Em seu artigo 5°, inciso I, ficou expressamente reconhecido que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, sendo a igualdade, neste contexto, não limitada somente ao seu aspecto formal – ou seja, reconhece que todos os indivíduos são sujeitos de direito. Ela é considerada também em seu aspecto material, ou seja, assegurando direitos e políticas públicas que atenuem assimetrias sociais e assegurem a mesma igualdade de oportunidades para que os cidadãos desenvolvam plenamente as suas capacidades.
Ressalte-se que o reconhecimento da igualdade de gênero como direito fundamental afirmou a implementação de discriminações positivas em favor das mulheres, com o intuito de promoção da igualdade material. Como exemplo, no capítulo que trata dos direitos sociais, destaca-se, entre outros, a proteção à maternidade (artigo 6°, caput), a implementação da licença-gestante (artigo 7°, XVIII); a proibição da diferença de salários, de exercícios de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor e estado civil (artigo 7°, XXX).
Além disso, o reconhecimento da igualdade de gênero como direito fundamental previsto nesta Constituição fez com que o Estado brasileiro se comprometesse a erradicar todas as formas de violência e discriminação de gênero contra mulheres cis e transexuais, sendo dever do Estado brasileiro enquanto Estado Democrático de Direito promover a igualdade de grupos vulneráveis e combater tais desigualdades. Um exemplo é a Lei Maria da Penha, que reconhece a importância da proteção de grupos historicamente oprimidos.
Por fim, a Constituição Federal de 1988 abriu caminhos para a emancipação da mulher. Há de ressaltar que o ‘texto frio’ da lei não garante, por si só, a plena igualdade de condições, porém, é um instrumento essencial para a construção da igualdade material entre os gêneros. Faz-se necessária a continuidade dos esforços por parte da sociedade civil para que referidos direitos saiam da abstração dos princípios e fundamentos legais, pois a igualdade de gênero é requisito essencial para a construção de uma plena cidadania.
Com base no exposto acima, é importante dizer que as mulheres vêm conquistando, gradualmente, seu espaço na sociedade brasileira. Apesar de todos avanços, muitas pautas ainda merecem atenção, como a persistência de salários inferiores às mulheres, a proibição do aborto, os alarmantes casos de violência contra a mulher, como feminicídio, estupros e abusos físicos e psicológicos, bem como a baixa representatividade de mulheres em cargos de liderança. A constituição, por certo, é um bom norte para iniciar a mudança da sociedade, no entanto, não é o único instrumento para garantir que a igualdade entre mulheres e homens seja estabelecida no país.
Além disso, é interessante observar como o estudo esquematizado das constituições reflete não só o contexto histórico daquele país, mas leva em consideração as transições pelas quais o mundo passa. Verifica-se que o Brasil elaborou suas cartas magnas em conformidade com as correntes predominantes no momento, como a queda do estado monarquista absolutista e florescimento do Republicanismo e democracia, as tendências liberais à época difundidas por escritores como Adam Smith, a repressão e autoritarismo lançados com base nos movimentos fascistas europeus e o Estado de Direito Democrático baseado nos pilares da revolução francesa, aliados ao dirigismo e às correntes filosóficas comunistas e socialistas, surgidas no século XIX.
Agradecemos a jurista Maria Paula Dallari que promoveu o encontro dos autores deste artigo no grupo de Teoria do Estado Brasileiro na Faculdade de Direito da USP.
*Ana Beatriz Prudente (FEUSP); Gabrielle Cristine Avelino (FDUSP); Gustavo Carvalho Galvão Machado da Silva (FDUSP); Thaís Torres Bahia (FDUSP); e Thiago Marques (FDUSP).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.