Por Ricardo Fabrino Mendonça *
Leio que um grupo de empresários teria importado vacinas e imunizado seus familiares por conta própria. Na sequência, vejo que algumas entidades ganharam na Justiça o direito de importar vacinas... E sem exigência de doação para o SUS. Depois querem me convencer de que “o Brasil não merecia um Bolsonaro” e que foi necessária uma improvável conjunção de fatores para que ele assumisse a Presidência. Sinto ter que dizer o óbvio, mas isso não faz sentido. Bolsonaro não é um líder incidental que chegou por acaso ao poder. Ele é Brasil... Ele é muito Brasil.
Mas há um risco aqui. Geralmente, quem reconhece a representatividade do presidente, acaba por aproximá-lo do povo... Não são, contudo, latas de leite condensado, camisas de futebol, o gosto pela pescaria ou um bom e velho copo lagoinha com café que farão de Jair a expressão das camadas menos abastadas da população. Engana-se quem o toma como imagem e semelhança do “povo”. Bolsonaro é um representante fidedigno do Brasil rico. Ele é a síntese, ainda que caricatural, do que construímos como “elite” nacional. Suas ideias e comportamentos cotidianos desnudam, de forma eloquente, a nata de nossa sociedade.
Uma palavra está no âmago dessa expressão eloquente: descaso. É o descaso pelo que é público, pelo outro, pelas instituições, pelas normas, pela vida. O Brasil é um case singular na construção do descaso. Trabalhou incansavelmente na estruturação de um projeto nacional calcado nele. Aprendeu cotidianamente a fechar os olhos para as desigualdades abissais que nos definem: seja para a criança que faz malabares no sinal de trânsito, para as pedras que expulsam a família em situação de rua de um viaduto ou para as estatísticas que nos dizem sermos o oitavo país mais desigual do mundo. O oitavo! Mesmo sendo a nona maior economia do plante até 2019 (já pioramos desde, então).
Nosso projeto nacional depende da desumanidade. Quem aguentaria ver seres humanos nas situações de indignidade a que os submetemos cotidianamente? Melhor vê-los como não humanos, negar-lhes direitos ou dizer explicitamente, a plenos pulmões, que só merecem direitos aqueles que nós entendemos como humanos (de bem).
O projeto nacional nunca teve preocupação com o público. Isso aqui sempre foi a terra do “salve-se quem puder” e, quando a farinha é pouca, cada um que cuide de seu pirão. Por aqui nunca houve sequer consenso na construção pública da segurança. O monopólio do uso legítimo da violência nunca foi, na prática, do Estado, haja vista todo o investimento em cercas elétricas, condomínios e empresas de segurança privada. No salve-se quem puder de nosso estado de natureza hobbesiano, ganha quem tem mais armas, mais armas, mais armas.
Não há que se contar com os outros. Estamos em alerta permanente. Prontos para o conflito. Fica esperto. Sem Estado e sem coletividade, sobra a família... Com suas brigas, seus conflitos, suas tragédias.... Mas é a quem se deve alguma responsabilidade nesse arremedo de projeto nacional. É a quem não aceitamos o descaso. A periferia precisou do “nóis por nóis” nessa terra, porque percebeu que o princípio está no coração da elite nacional desde os tempos de Colônia. Nossa elite sempre foi pródiga em subterfúgios para reduzir seus tributos e para expandir, com eficiência, o patrimônio. Sempre se convenceu do risco iminente que se anunciava nessa terra bárbara, protegendo-se antecipada e privadamente, de cada risco. Se quiser, não toma vacina; mas se quiser, passa na frente. Manda buscar.
Nessa busca por segurança e sobrevivência, o patrimônio ajuda bastante. Mas ele não dá conta de tudo. É preciso também a lei. Draconiana se possível. Obviamente, ela não se aplica a todos. Há quem burle regras sanitárias, profira ameaças e injúrias, preste serviços sem nota e pratique todo tipo de manobras fiscais. À nata do país, tampouco se condena a prática de obstrução de justiça. “Poderia ela agir de outro modo nessa terra do salve-se quem puder?”, indaga-se qualquer nativo. Dela não se cobram explicações. Pode ignorar perguntas e ainda sair bradando impropérios a quem ousa questionar. Ora... Onde já se viu?
Infelizmente, e pode ser difícil admitir isso, historicamente, a elite nacional também não foi afeita às letras, artes e ao conhecimento. O descaso com o conhecimento sempre foi gigante aqui. Claro, há casos isolados aqui e ali, algumas famílias dedicadas ao mecenato e o gosto generalizado pelo cenário badalado de teatros, concertos e museus (de Paris). Aqui, contudo, museus pegam fogo, artistas locais mendigam auxílios e o investimento em cultura, ciência e tecnologia é ínfimo. São raros os investimentos e prêmios privados que valorizam o conhecimento em si e as expressões artísticas em sua variedade. Grande parte do quase nada que existe não chega a ser aposta de fato no conhecimento, mas escambo explícito por isenções fiscais.
Aqui não tem essa coisa de preocupação comum. Dependemos do descaso. Ele é visto como a condição de sobrevivência para lidar com o mundo áspero que nos rodeia. O projeto nacional foi e continua sendo a política do meu pirão primeiro. Ele precisa do descaso às regras, às instituições, aos outros. E daí? Vida que segue. Toca seu barco aí se quiser não afogar. Até porque a morte é o destino de todo mundo...
E seguimos, no descaso cotidiano de cada dia. Até que vem o espelho e grita diante de nós o nosso plano de nação. E, então, só então, nos espantamos... “Que horror!”, “Que falta de respeito e cuidado com os outros”, “Vai destruir o país”. Quando o reflexo é feio, é mais fácil tentar quebrar o espelho do que olhar para a fonte da imagem especular. Bolsonaro é o Brasil! Cuspido e escarrado.
É o Brasil acima de todos.
*Ricardo Fabrino Mendonça é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do INCT.DD e do Margem.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.