Por Estevan Mazzuia *
Sempre admiti o talento do atual inquilino do Palácio da Alvorada para conseguir piorar o que já ultrapassou, há muito, os limites do aceitável. Quando começam a falar em demissão de ministro, chego a sentir saudades do colombiano (nem me dei ao trabalho de procurar o – já esquecido – nome do infeliz) e daquele semianalfabeto que estiveram no comando da Educação. Moro e Mandetta? Nunca critiquei. Depois que vacinas destinadas ao Amapá foram parar no Amazonas, e vice-versa, as definições de logística foram atualizadas, com sucesso.
E para nos tirar do sério? Por mais que saibamos tudo o que ele já disse e fez, e saibamos o que ele é capaz de dizer e fazer, ainda nos irritamos. Não faz o menor sentido. Deveríamos ignorá-lo solenemente, relegando-o à sua insignificância histórica. Fácil falar. Ele tem o dom. Essa semana, tripudiando sobre 250 mil cadáveres, ele equiparou um “meme” alemão a estudo científico, para defender o não uso de máscaras. Eu não entendi o motivo da preocupação, para alguém que nunca as usou. Mas a coragem dele, em agredir as estruturas do bom senso, nos fere. Parabéns, Jair.
Um de seus ataques, contudo, tem sido infrutífero. Desde que chegou no posto que jamais desejou ocupar, ele acorda, come e dorme tentando, de todas as maneiras, ter a pior aprovação de um presidente na história desse país. Quem sabe assim ele possa transferir a responsabilidade de uma eventual saída. Uma pessoa como ele, jamais renunciaria. Não haveria como responsabilizar outra pessoa por tal ato.
Noto que tem sido frustrante para ele. Está cansado, desgastado. Imaginem acordar, pensar numa maneira de abalar a confiança daquele terço de brasileiros que não largam seu calcanhar, falar e cometer barbaridades, imoralidades, crimes de responsabilidade, e ir dormir ainda mais amado. É, Jair, pelo visto, carregarás esse fardo por mais um bom tempo.
Enquanto um terço da nação segue comemorando os ataques ao país como se fossem ataques ao PT, outro terço segue mais preocupado com o BBB21 do que com o futuro de seus filhos e netos. Na última semana, a escolha do “brother” a ser eliminado da tal casa maluca teve 283 milhões de votos. Na eleição de 2018, o maluco que entrou na casa presidencial não teve um quarto disso.
Felizmente, pertenço ao outro terço, a minoria. Parafraseando Darcy Ribeiro, não suportaria estar ao lado daqueles que me derrotaram. Seguirei esperneando, nem que seja para mero registro histórico, para que alguém que, daqui alguns anos, procure entender como o Brasil se tornou um solo estéril, saiba que houve quem ainda acreditasse em sua fertilidade, sempre disposto a semear as mais áridas mentes.
Mas vamos falar de lembranças que, pra sambista que se preze, o dia só termina ao meio-dia, e fevereiro só acaba depois do carnaval. E se faltou carnaval na avenida, aqui na Fórum Folia revivemos diversos carnavais, e até tristes passagens de nossa festa. Nossa série “Memórias de Fevereiro” termina com momentos que marcaram o dia 2 de março, ao longo da história
Em 1981, as escolas do segundo grupo desfilaram tanto no Rio como em São Paulo, e tivemos duas campeãs tradicionais, depois de um amargo descenso no ano anterior: Unidos de São Carlos (atual Estácio de Sá), com "Quem diria, da monarquia à boemia, ao esplendor da Praça Tiradentes", de Ney Ayan e Gil Costa, e Unidos do Peruche, com “Moço de Prata, Vitória-régia no Carnaval”, de Nery Balmaceda. A Unidos do Peruche, por sinal, desfilava pela primeira vez fora do grupo principal. Hoje, ela agoniza no terceiro grupo paulistano.
Três anos depois, ocorreu a inauguração do Sambódromo da Sapucaí, com o desfile do grupo 1B, segunda divisão do carnaval, com quatro escolas conquistando o sonhado acesso: Unidos do Cabuçu, Acadêmicos de Santa Cruz, Em Cima da Hora, e São Clemente. A Unidos do Cabuçu homenageou Beth Carvalho, iniciando a sequência de homenagens que marcaria sua presença, pelos próximos seis anos, no grupo principal (Sérgio Porto, Roberto Carlos, Os Trapalhões e Mílton Nascimento), seguida por mais alguns anos no grupo de acesso (Adolpho Bloch, Xuxa e Maurício de Souza). A agremiação era presidida por Therezinha Monte, a primeira mulher a chegar ao posto mais alto de uma escola de samba por meio de eleições. Suas memórias foram reunidas no livro “Alma de Cabrocha”, publicado em 2018.
No segundo dia de março de 1987, Barroca Zona Sul e Flor de Vila Dalila desfilaram para conquistar o acesso no carnaval paulistano. Seria o último acesso da Flor, que homenageou Vinícius de Moraes, e hoje desfila no grupo especial de bairros, equivalente à quarta divisão. A Barroca, que nasceu grande, fundada em 1974, por Pé Rachado, ex-presidente do Vai-Vai, passou por maus bocados, mas voltou ao grupo principal, onde permanece atualmente. No Rio de Janeiro, tivemos a segunda noite de desfiles, com destaque para Unidos de Vila Isabel, com o tema “Raízes” e um samba antológico de Martinho da Vila, sem rimas, e Mocidade Independente de Padre Miguel, com “Tupinicópolis”, o último carnaval concluído por Fernando Pinto, que morreria precocemente, no final de 1987, num acidente automobilístico. Ambas saíram da Marquês de Sapucaí favoritíssimas, mas seriam derrotadas, de forma inexplicável, por uma pobre e insossa Mangueira, que desfilara na manhã daquele dia 2 (mas dia 1, para sambista, lembremos), com uma homenagem a Carlos Drummond de Andrade.
Cinco anos depois, a Sapucaí seria testemunha de uma de suas maiores catarses: com o enredo “Paulicéia Desvairada - 70 anos de Modernismo”, de Mário Monteiro e Chico Spinoza, a Estácio de Sá conquistaria seu primeiro, e até hoje único, campeonato no grupo principal, com simplicidade e samba no pé, impedindo o tricampeonato da Mocidade Independente de Padre Miguel, com o luxo garantido por suntuosos (e pouco cristãos) aportes financeiros de Castor de Andrade e o neon de Renato Lage.
O 2 de março de 2003 recebeu a primeira noite de desfiles no grupo principal do Rio de Janeiro, mas o que marcou mesmo para mim foi o desfile da Acadêmicos do Tatuapé, no grupo de acesso paulistano. Com o enredo “Abram Alas Para o Rei Abacaxi”, desenvolvido por Babu Energia, a escola fez um desfile arrebatador, e conquistou o título e o acesso, voltando ao grupo especial depois de 26 anos, enquanto comemorava seu Jubileu de Ouro. Eu participei daquele desfile, na bateria, com um belíssimo chapéu em forma de abacaxi, e confesso que só me convenci das chances da escola ao vê-la montada, na concentração.
2014 foi ruim para a Beija-flor. Com uma homenagem a Boni ("O astro iluminado da comunicação brasileira"), o ex-todo poderoso da Vênus Platinada, a escola encerrou a primeira noite de desfiles do Grupo Especial, e conquistou um sétimo lugar trágico para as ambições nilopolitanas, tirando a escola do Desfile das Campeãs, que ela frequentava desde 1993, de forma ininterrupta. Aliás, de 1976 até hoje, a escola só não se classificou entre as seis primeiras em três oportunidades. As outras foram em 1992, outro sétimo lugar, e em 2019, um catastrófico e inimaginável 11º lugar.
A última vez que tivemos carnaval em março foi em 2019. No dia 2, rolaram as segundas noites de desfiles do grupo especial de São Paulo, e do grupo de acesso no Rio. Enquanto a Estácio de Sá desfilou com “A fé que emerge das águas”, para conquistar o título e o direito de voltar ao grupo principal, a Gaviões da Fiel, pelas mãos de meu amigo e padrinho no samba, Sidney França, reeditava o antológico “A Saliva do Santo e o Veneno da Serpente”, de 1994, sobre o tabaco, frequentemente revisitado por aqueles que não têm o menor receio de passar vergonha, por conta da comissão de frente, na qual um duelo entre o bem (Jesus e alguns anjos) e o mal (Bolson..., digo, o tinhoso) era encenado. Ah, o bem vence no final, mas esse detalhe nunca é lembrado pela turma de “doutores da zaplândia”.
Vice-campeã em 1994, depois de levar uma inexplicável nota 6 de samba-enredo, a escola amargou um nono lugar em 2019. Reproduzo os versos de Grego e Magal, daquele samba pelo qual tenho um carinho muito especial, por estar presente nas arquibancadas nas duas oportunidades em que foi cantado na avenida:
“Saravá, sarava, salve o Santo Guerreiro
E uma vela pra saudar, meu São Jorge padroeiro”
Que São Jorge nos proteja e nos ajude a enfrentar o que vem por aí.
Saravá!
P.S.: A coluna de hoje é dedicada aos Mamonas Assassinas, mortos em um fatídico acidente aéreo, há exatos 25 anos. Foram enredo da Inocentes de Belford Roxo, no carnaval de 2011, quando a escola conquistou o oitavo lugar no grupo de acesso do Rio de Janeiro.
*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.