Na semana em que assistimos ao deputado Daniel Silveira ser preso depois de fazer sérias ameaças à democracia, e afinar que nem viola velha quando se viu completamente abandonado por JB, o parvo, fica a homenagem a Bezerra da Silva, nascido em 23 de fevereiro de 1927, que acertadamente cantou:
“Você com revólver na mão é um bicho feroz / sem ele anda rebolando, até muda de voz”
Mas sigamos relembrando as efemérides do samba, que marcaram outros carnavais, em outros 23 de fevereiro.
Em 1936, desfilando na Praça Onze, a Unidos da Tijuca seria campeã do carnaval pela primeira vez, com “Sonhos Delirantes”. Naquele ano, o regulamento previa que a campeã seria a agremiação que recebesse a maior nota no quesito harmonia. A escola amarelo-ouro e azul-pavão teria que esperar 74 anos para comemorar outro título, em 2010, com “É Segredo”, de Paulo Barros, mas isso é assunto para outro artigo.
Já em 1941, a Portela desfilou com o enredo “Dez Anos de Glórias”, para conquistar seu terceiro título, e o primeiro do heptacampeonato nos anos 40, jamais igualado. Tempos em que Natal, com um braço só, dava muito tapa em vagabundo e na mesa de apuração também.
No fatídico ano de 1964, o carnaval caiu no início de fevereiro e certamente serviu para inspirar a fundação do Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Príncipe Negro de Cidade Tiradentes, dia 23, na residência do Sr. Deusdedeth Galvão, na Vila Prudente, em São Paulo. A escola azul, amarelo e branco desfilou por três oportunidades entre as grandes da capital bandeirante e acabou se mudando para a Cidade Tiradentes, já nos anos 90. Atualmente, disputa o equivalente à quinta divisão do carnaval, mas deve ser lembrada e reverenciada pela tradição e importância histórica. Vida longa ao Príncipe Negro!
Fazendo um imenso salto pelo tempo, chegamos a 1990, quando a simpática Leão de Nova Iguaçu desfilou com o enredo “O Leão falou, abre o jogo, doutor”, na Avenida Rio Branco, para se sagrar campeã do grupo B, terceira divisão carioca. Seria o segundo título da escola em quatro anos, numa ascensão meteórica que a levaria ao grupo especial em 1992, apenas o sexto ano desfilando na capital fluminense. Tempos que nunca mais voltaram, pois há muito a escola vermelho, ouro e branco agoniza nos grupos de acesso.
Em 1998 a Marquês de Sapucaí viveu uma noite histórica: Mangueira homenageou Chico Buarque, com “Chico Buarque da Mangueira”, do genial Alexandre Louzada, enquanto a Beija-Flor, já na madrugada do dia 24, cantou “O mundo místico dos Caruanas nas águas do Patu-Anu", desenvolvido por uma comissão de carnaval. A quarta-feira de cinzas da apuração lhes reservou um surpreendente empate, acabando com longos jejuns da verde-e-rosa (11 anos) e da deusa da passarela (15 anos).
Três anos depois, era a vez dos paulistanos verem de perto o trabalho de outro grande carnavalesco, Milton Cunha, hoje mais conhecido por seus figurinos espalhafatosos e seus comentários nas transmissões carnavalescas da vênus platinada. Pela Leandro de Itaquera, em parceria com Jerônimo Guimarães, Werner Botelho, ele desenvolveu “Os Seis Segredos do Ariau”, produzindo um belíssimo desfile, que daria o oitavo lugar à escola da Zona Leste paulistana.
O Sambódromo carioca completou 20 anos em 2004 e a Liga das Escolas de Samba planejou, inicialmente, um carnaval com enredos e sambas reeditados, por toda as escolas. Como nem todas estavam a fim de perder as boas vendas de cerveja durantes os concursos que promovem a escolha dos sambas de enredo, a obrigação virou permissão, e contou com a adesão de apenas quatro das 14 agremiações. Na noite do dia 23, o Império Serrano desfilou com “Aquarela Brasileira”, reedição de 1964, desenvolvido por Ilvamar Magalhães, enquanto a Unidos do Viradouro reeditou “A festa do Círio de Nazaré”, de 1975, da Unidos de São Carlos, atual Estácio de Sá, reentitulado “Pediu pra Pará, parou! Com a Viradouro eu vou pro Círio de Nazaré”, desenvolvido por Mauro Quintaes. O Império terminaria apenas em nono lugar, e a Viradouro em quarto. A noite ainda teria o desfile da Beija-flor, que se sagraria campeã, com “Manõa, Manaus, Amazônia, Terra Santa: alimenta o corpo, equilibra a alma e transmite a paz”, desenvolvido por uma comissão de carnaval, encabeçada por Laíla.
Tenho um carinho especial por esse ano de 2004, pois foi o primeiro ano em que assisti ao desfile na Marquês de Sapucaí. Mas no sábado, das campeãs, onde pude conferir de perto os desfiles de Viradouro e Beija-flor, além de outras quatro agremiações. Lembro de um momento emocionantes da noite: ainda na concentração, Neguinho da Beija-flor cantou “Aquarela Brasileira”, lamentando a ausência do Império Serrano entre as seis primeiras colocadas.
Não foram apenas Mangueira e Beija-flor que saíram de longa fila desfilando num 23 de fevereiro. Em 2009 foi a vez do Salgueiro, com “Tambor”, de Renato Lage, 16 anos depois do arrebatador “Peguei um Ita no Norte” e seu antológico samba (“explode coração, na maior felicidade...”).
Já que 2021 passou em branco, nosso último carnaval também teve um dia 23 memorável. No Rio, Unidos de Viradouro desfilou com "Viradouro de Alma Lavada", de Marcus Ferreira e Tarcisio Zanon, para conquistar seu segundo título, depois uma década bastante complicada, em que a escola penou no grupo de acesso. Em São Paulo, tivemos um encontro inusitado de três grandes e tradicionais agremiações, no grupo de acesso: Vai-Vai, Camisa Verde e Branco e Nenê de Vila Matilde, com a primeira sagrando-se campeã e, a última, rebaixada para a terceira divisão, pela primeira vez em sua história.
Concluo, assim, o terceiro episódio da série especial de carnavais que marcaram tempos de mais alegria em nosso sofrido país, destacando os versos de Carlinhos das Camisas, Nelson Csipai, Nelson Dalla Rosa e Vilas Boas, para a Mangueira em 1998:
“Chico abraça a verdade, com dignidade, contra a opressão”.
Como em João, 8:32, “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.”
Há quem fizesse questão de citar esse versículo a cada mentira, até pouco tempo atrás. Hoje anda calado. Com dignidade, a verdade está, aos poucos, nos libertando dessa opressão pela ignorância.
Que assim seja.
*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.