Por Claiton Mello*
Há algum tempo, tenho sido provocado a comparar a agricultura familiar desenvolvida no Brasil com a realizada em Portugal. Trata-se de uma tarefa difícil. As diferenças entre esses dois países são bastante acentuadas, principalmente do ponto de vista numérico: o primeiro com 213 milhões de habitantes e o segundo com pouco mais de 10 milhões. A perspectiva econômica entre ambos é bem diferente: o PIB per capita, em dólar (2020), no Brasil é de 6,8 mil, e em Portugal é de 22,4 mil. Na agricultura, porém, a lógica de financiamento da produção não muda muito!
Em Portugal, a economia está baseada na integração do país à União Europeia (UE), fato que aconteceu e se consolidou entre os anos de 1980 e 2000. Este movimento trouxe impactos tremendos aos homens e mulheres que viviam da terra. Portugal teve que se adequar à nova moeda e às políticas da UE, no caso, à Política Agrícola Comum (PAC). Após a grande reforma da PAC, em 1992, que impôs quotas de produção desajustas à realidade do país, e com a maior parte dos subsídios direcionados aos grandes proprietários de terras, foram os agricultores camponeses portugueses os que mais sofreram, quando os preços dos produtos agrícolas caíram pela metade, devido à equiparação dos itens produzidos por outros países do bloco, a exemplo de economias mais fortes como Espanha, França e Alemanha.
De lá para cá, a PAC, que é o segundo maior orçamento de subsídios da UE dirigido aos estados-membros, com recursos não reembolsáveis, foi sendo cada vez mais canalizada às grandes empresas capitalistas e donas de explorações extensivas, dedicadas ao mercado exportador. No caso de Portugal, o dinheiro foi para as imensas fazendas irrigadas do sul do país, e que concentram mais de dois terços dos recursos da PAC.
Esse modelo de investimento dos últimos 30 anos radicalizou a exclusão produtiva do camponês, pequeno agricultor familiar português. Conforme o último censo agrícola, mais de 40% desses agricultores não têm acesso à PAC. Além disso, as diferenças territoriais foram ampliadas. O declínio da produção nas terras agricultáveis ao centro e norte de Portugal foi inevitável, justamente nesses espaços que eram caracterizados por uma agricultura mais intensiva em mão de obra e de pequena escala familiar. Como consequência direta, nos últimos anos o défice da balança comercial agrícola, especificamente de alimentos, é negativo em cerca de quatro bilhões de euros. Quer dizer: produtos da cesta básica, como batatas, hortaliças e frutos, são importados para garantir o abastecimento doméstico, situação que atenta contra a soberania alimentar do país.
A falta de apoio à atividade camponesa do tipo familiar, medidas políticas e financeiras, sejam nacionais ou da UE, levou também ao despovoamento do território, trazendo resultados devastadores nas economias locais, envelhecimento populacional e graves riscos ambientais, a exemplo dos incêndios anuais nas áreas rurais portuguesas. Onde? Principalmente ao centro e norte de Portugal, onde a agricultura de pequena escala e a gestão e manejo da floresta andavam juntas.
Em oposição a Portugal, a balança agroalimentar do Brasil é significativamente positiva e representa quase um quarto de toda a exportação do país. No entanto, os custos ambientais deste “sucesso” brasileiro são bastante conhecidos mundo afora: incêndios e devastação da Amazônia, destruição do Pantanal, extermínio do Cerrado e Caatinga, desertificação do Pampa e descuido com o que resta da Mata Atlântica, com adição descontrolada de muito agrotóxico sobre o ambiente e as pessoas, para a produção não de alimentos, mas de commodities, tipo de produção agrícola para exportação, mas sem valor acrescentado.
O financiamento desse modelo insustentável de agricultura, no Brasil, recebe o maior investimento e apoio por parte do Estado: o que representa, em média, cerca de 85% do Plano Safra (PS) anual. O restante do crédito agrícola, todo operado pelo sistema financeiro e com recursos reembolsáveis, é dirigido ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), com insuficiência e limitação para atender a toda a necessidade da produção camponesa. Além disso, no atual PS 2021/22 houve um aumento de 10% sobre as taxas de juros praticadas para a agricultura familiar, em relação ao período anterior.
Mesmo assim, o movimento camponês da agricultura familiar brasileiro tem resistido nesses últimos anos, principalmente após o golpe jurídico, parlamentar e midiático que derrubou o governo Dilma, em 2016, e que provocou maior exploração sobre os trabalhadores, com retirada de direitos, aumento da miséria e retorno da fome, em consequência da redução ou eliminação de investimentos e de programas sociais.
Programas específicos voltados para a produção camponesa e familiar de alimentos ainda se mantêm, mas com escassos recursos e baixas execuções orçamentárias, a exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que consiste na compra pelos órgãos do Estado diretamente dos agricultores familiares e de suas cooperativas. O PAA, que nasceu em 2003, início do governo Lula, ultrapassou o valor orçamentário de mais de 800 milhões de reais, em 2012, porém, para 2021, seu orçamento é de apenas 101 milhões de reais.
Outra situação crítica está relacionada ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que teve uma modificação em seu desenho, em 2009, quando definiu que os alimentos deveriam, prioritariamente, ser fornecidos pela agricultura familiar para atender a uma demanda diária de mais de 40 milhões de refeições. No entanto, esse modelo do programa vem sendo ameaçado e colocado em risco pelo lobby das grandes corporações e indústrias alimentícias, aliadas do atual governo genocida de Bolsonaro.
As comparações entre os países são difíceis de se estabelecer. No entanto, o modelo capitalista é o mesmo aplicado sobre a agricultura, seja em Portugal e na União Europeia, seja no Brasil e na maioria dos países da América Latina: muitos recursos ao agronegócio, produtor de mercadoria para o comércio exportador, e uma pequena fatia aos agricultores familiares do campo, responsáveis pela produção de alimentos do dia a dia, e que têm maior cuidado com a terra e com a natureza.
É possível perceber que a luta de classes está escancarada e mais feroz a cada dia. Os exploradores, que controlam os governos e definem as diretrizes dos países, não sossegam um minuto nesta disputa: a cada instante, acumulam mais e mais riquezas, retiradas de quem as produz, por meio de leis e reformas ditas necessárias. Sempre querem nos convencer de que são os trabalhadores e os mais pobres é que devem pagar a conta da festa do capital. Contra isso, e por um Estado que esteja voltado aos interesses da maioria da população e ao verdadeiro cuidado com o meio ambiente, temos que estar atentos e fortes, para nos organizar, resistir e lutar. E a defesa da agricultura familiar e camponesa é um desses campos de luta, seja onde for!
*Claiton Mello é filiado ao PT-DF, mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB) e doutorando em Desenvolvimento, Sociedades e Territórios pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), em Portugal.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.