Por Melissa Cambuhy*
A ordem de fechamento do Consulado chinês, em Houston, pelos EUA e a resposta chinesa de fechamento do Consulado Geral estadunidense, em Chengdu, materializa o arrefecimento da tensão e o processo de deterioração das relações EUA-China.
Neste sentido, é interessante lembrarmos que o Consulado chinês localizado em Houston, Texas se trata do primeiro estabelecido após a retomada das relações diplomáticas entre os países em 1979.
Em declaração da Embaixada da China sobre o episódio, pontuou-se que este se caracteriza como “uma provocação política lançada unilateralmente pelo lado americano, que viola seriamente o direito internacional, as normas básicas que regem as relações internacionais e o acordo consular bilateral entre a China e os EUA. A China condena veementemente e se opõe firmemente a uma medida tão ultrajante e injustificada que sabota as relações China-EUA.”
Além disto, sobre as acusações do governo estadunidense de que invasões de hackers, cuja finalidade seria de espionar e roubar segredos industriais, foram o que impulsionaram a decisão em tela - mesmo sem qualquer evidência concreta dos hipotéticos delitos - a Embaixada chinesa afirmou tratarem-se de “invenções infundadas, e as desculpas que ele cita são exageradas e insustentáveis.”, e ainda que insta “o lado americano a revogar imediatamente essa decisão errônea. Caso contrário, a China terá que responder com ações legítimas e necessárias".
Para além deste recente episódio, que expressa de maneira inequívoca a escalada da tensão sino-estadunidense, é possível elencar vários outros fatores conjunturais que conformam esse processo de escalada de tensões como a Guerra Comercial, os conflitos envolvendo a Huawei e a tecnologia 5G, as manifestações em Hong Kong e a atual Lei de Segurança Nacional, as denúncias de violações aos direitos humanos da minoria étnica uigur, e as acusações de que a China seria responsável pela atual pandemia.
Entre eles - por conjugar um caráter conjuntural, mas também expor algumas questões estruturais da dinâmica econômica estadunidense – destaca-se a Guerra Comercial que o governo Trump impôs à China em 2019, diante do gigantesco déficit que golpeia sua balança comercial.
Importante rememorarmos que tal déficit comercial tem gênese em meados da década de 70, quando diante da ruptura político-econômica com a dinâmica fordista-keynesiana, e o consequente estabelecimento de uma dinâmica neoliberal caracterizada pelo processo de descentralização produtiva, ocorre a transferência do setor produtivo estadunidense para países em desenvolvimento, com destaque para a China.
Destaca-se ainda o altíssimo fluxo de investimentos externos em direção à China – à época das Reformas de Abertura de 1978, até o presente, em que ocupa o lugar de 2º maior influxo de capital estrangeiro do mundo – e, à despeito das denúncias e lamentos acerca do empregos perdidos para o gigante asiático, frisa-se os ganhos imensuráveis de capital que as empresas estadunidenses angariaram durante o período. Isto porque, apesar de atualmente a China deter grandes marcas globais, inicialmente ocupava-se apenas da montagem e produção de bens, os quais não se detinha a marca. Logo a rentabilidade se destinava ao que se categorizou como “firmas líderes” que são as compradoras, importadoras, e que detêm o projeto, a marca, marketing e a P&D. Ou seja, as empresas estadunidenses em solo chinês.
Um ótimo exemplo do fenômeno são os produtos da família Apple (MacBooks, iPods e iPads), que trazem em seu rótulo: “projetado pela Apple na Califórnia, montado na China”. Sendo que tal cenário se implica na estratégia de desenvolvimento tecnológico chinês que, em seu primeiro momento a partir de 1978, lançou mãos das Zonas Econômicas Especiais para recepção dos montantes de investimentos externos com o fito de absorver tecnologias mais avançadas e acumular reservas em moeda estrangeira.
Tais fatos e conjuntura socio-econômica, também conceituada como “globalização”, depois de algumas décadas explicam a plataforma eleitoral vitoriosa de Trump, cujo foco era e continua sendo a reivindicação do mote “Make America Great Again”, em um tom de nostalgia fordista para acessar a classe trabalhadora estadunidense que perdeu e muito com a supracitada transferência das plantas industriais.
Relaciona-se a isto outro fator conjuntural altamente relevante que é a iminência das eleições presidenciais dos EUA.
Interessante notar que a retórica Anti-China conquistou, inclusive, consenso entre os campos políticos estadunidenses, já que mune ambos de uma narrativa que visa unir o eleitorado contra um inimigo comum, para além da desaceleração econômica e o encrudescimento progressivo das contradições internas, como as relacionadas ao racismo estadunidense.
Neste sentido, inquestionável a derrota estadunidense na batalha contra a Covid-19. O país atualmente conta com 4.250.380 contaminados, e 148.593 mortes, sendo necessário frisarmos a subnotificação consequência da política negacionista que o governo adotou.
Diante dos fatores apresentados – considerando que a vitória chinesa no combate à Covid-19 não só nacionalmente, mas também no campo geopolítico ao se mostrar capaz e disposta ao fornecimento de bens globais, e ainda sua escalada tecnológica expressa no conflito que envolve o 5G e a Huawei – é possível notar que existe uma racionalidade que norteia os acontecimentos atuais e nos dá pistas do que pode estar por vir.
É central termos clareza que o desenvolvimento nacional chinês, sua escalada produtivo-tecnológica nas cadeias globais de valor e o aumento de sua influência no Oriente Médio, continente africano, latino-americano e, inclusive europeu por meio da política Cinturão e Rota, se impõe como derrota material e ideológica ao “sonho americano” e à hegemonia estadunidense. Seria ingenuidade conceber que os Estados Unidos não mobilizaria todas assuas muitas ferramentas possíveis, imagináveis e, algumas vezes, inimagináveis para reagir ao gigante asiático.
Nesta linha, de fato existe uma questão conjuntural colocada que em muito direciona os últimos acontecimento – as eleições – porém para além desta, há um fator estrutural que transcende a do governo estadunidense atual, ou futuro, mas que se refere aos Estados Unidos da América em si e sua posição hegemônica que ultrapassa qualquer projeto governamental, e se coloca enquanto política de Estado consolidada. Fenômeno este tão estranho a nós latino americanos, mas tão pacífico no Norte desenvolvido em que as instituições políticas e econômicas não sofrem ataques externos permanentes.
Diante do que apresentamos, passamos a reflexão acerca da narrativa de que se opera atualmente uma segunda Guerra Fria.
Embora haja distância relevante entre o momento histórico-econômico em que EUA e URSS “guerrearam” pelo posto de potência global e o atual conflito sino-estadunidense, logo distância ideológica e material entre tais conflitos, estas não diminuem a gravidade do arrefecimento que ocorre atualmente. Assim, a identidade encontra-se no acirramento da disputa entre dois projetos inegavelmente distintos não só de estratégias de desenvolvimento nacional, mas de política externa e governança global.
Enquanto latino-americanos que há tanto sofrem os mais variados tipos de intervenções político-econômicas estadunidenses, questionar uma nova guerra fria não é necessariamente uma defesa do projeto chinês, mas dos nossos interesses enquanto nação e, os da humanidade, que também tem muito a perder com a já clássica estratégia estadunidense de imposição de seus receituários unilaterais mundo afora.
Para além dos conflitos e guerras que vitimaram vários países do Oriente Médio, em muito embasados na xenofobia e no racismo, como ocorre agora na campanha anti-China – e os quais desestabilizaram a região e aumentaram suas organizações terroristas – intervenções oficiais, e não-oficiais, dos EUA no continente latino americano são incontáveis e de notório saber.
Desde a promoção e financiamento de ditaduras em Cuba, Nicaragua, República Dominicana, adicionadas de intervenções diretas da CIA na Guatemala, Paraguai, Brasil, Bolívia, Argentina, Uruguai e Chile, a intervenção estadunidense perpassa a dimensão militar e econômica ao impor receituários que castigam os países subdesenvolvidos, e em desenvolvimento, com políticas liberalizantes como as que compõem o Consenso de Washington.
Neste sentido, vale destacar o papel que em contraposição aos EUA, a China tem desempenhado tanto no crescimento econômico global, quanto na redução da pobreza. Considerando a definição de pobreza estabelecida pelo Banco Mundial, o gigante asiático retirou da pobreza 860 milhões de pessoas, sendo responsável por cerca de 70% de toda redução desta no mundo.
No que tange ao crescimento econômico e a desaceleração que há algum tempo golpeia o cenário econômico internacional em um contexto de alta financeirização das economias nacionais, a China tem tido papel central no crescimento econômico global, tal fato se ratifica com dados do FMI que mostram projeções de que nos próximos dois anos a parcela de contribuição da China para o crescimento mundial seria de 51%, Índia de 19%, e EUA de 3,3%.
Quanto à pauta da mudança climática, os Estados Unidos é o único que formalmente rompeu com o acordo de Paris e pressionou outros países como Brasil e Arábia Saudita a o sabotarem.
Diante do exposto, resta evidente o quanto o conflito sino-estadunidense transcende a dimensão da relação bilateral entre os países e atinge a dimensão da ordem internacional, a qual encontra-se em plena disputa de destinos.
Sendo assim, conhecer e compreender os aspectos conjunturais e estruturais que conformam tal disputa, a dimensão do que de fato está em jogo, e ainda, os projetos de país e de mundo que tais potencias representam, nos mune de capacidade para compreender e incidir ativamente sobre nosso destino, que pode manter sua trajetória antinacional, ou inspirar-se em novos horizontes de desenvolvimento econômico e social.
*Melissa Cambuhy (IG @melissa.cambuhy) é graduada em Direito, com habilitação especial em Direito e Desenvolvimento, e Mestra em Direito Político e Econômico. Pesquisadora e professora, tem como foco de pesquisa o processo de desenvolvimento chinês.
*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.