Por Gabriel Galli*
Rosa Luz tem sorriso doce e voz suave, mas isso não significa falta de força.
A artista brasileira, travesti, negra e periférica de 24 anos já atuou em dois filmes (“Chega de Fiu Fiu“, 2018, e “Estamos Todos Aqui“, 2019) e já expôs no Museu de Arte de São Paulo (Masp).
Além de performer, artista visual e rapper, Rosa também cria conteúdo digital para o seu canal do YouTube, o qual tem atraído tanto admiradores quanto haters.
Em uma das performances que realizou (vídeo abaixo), ela ficou em pé, imóvel, sem blusa, no meio das escadas da rodoviária do Plano Piloto de Brasília, por onde passam cerca de 700 mil pessoas por dia.
Algumas pessoas a xingaram com palavras transfóbicas, outras a abraçaram. Uma mulher fez um discurso sobre como ela poderia estar influenciando crianças a “virar” homossexuais.
“Nós apenas por existirmos incomodamos muita gente, né?”, diz ela.
O incômodo se traduziu em tom mais grave recentemente via internet. Para divulgar uma música, Rosa postou em suas redes sociais a ilustração de uma cabeça decepada, que lembrava a do presidente brasileiro. Nas mensagens, começou a receber ameaças de morte e viu seu trabalho alvo de críticas em perfis com milhares de seguidores.
Em entrevista ao Global Voices por vídeo-chamada, Rosa avaliou: "Era uma manifestação artística, um som metafórico, pessoal, que fala sobre o racismo no mercado da música. É óbvio que eu não deceparia ninguém, mas as pessoas são tão transfóbicas e racistas que é mais fácil para elas me colocar no lugar da bandida e da terrorista do que entender o contexto".
Apesar de não ter sido a primeira vez que foi alvo de críticas, o nível das ameaças escalou com o episódio. Rosa ocultou as contas nas redes sociais e tem recebido apoio da Front Line Defenders, organização internacional em defesa dos direitos humanos, e da Access Now, entidade que defende os direitos digitais de pessoas em risco.
Arte para existir
Rosa cresceu na região do Gama, Distrito Federal, próximo a Brasília, em um lote com três barracos. Histórias envolvendo abusos e gravidez na adolescência fizeram parte da história de parentes próximos a ela. Foi nesse contexto que descobriu que o gênero masculino designado a ela não era compatível com o que sentia. Ela lembra: "Eu colocava uma blusa na cabeça para servir de cabelo e dançava com meus primos. Me sentia feliz fazendo isso, era minha essência. Só que parecia que tinha algo errado. Eu tinha pau e não deveria agir daquela forma. As pessoas tratavam isso como um problema e me violentavam".
Para protegê-la, a mãe a colocou em um colégio de freiras. Como escape, Rosa mergulhou nos livros e virou uma das alunas mais aplicadas nas questões religiosas. Ela brinca que, se fosse um homem cisgênero e heterossexual, seria coxinha (gíria brasileira para designar pessoas conservadoras e de direita).
Ao descobrir sua orientação sexual e identidade de gênero, ela se viu tendo que escolher: quando lhe disseram que não poderia conciliar quem era com a fé, acabou deixando a religião.
Entrou para o curso de Teoria, Crítica e História da Arte na Universidade de Brasília (UnB), acreditando que não tinha talento e esse seria um caminho possível para trabalhar com arte, como conta: "Comecei a estudar auto-retrato e foi a primeira vez que me permiti olhar para mim mesma. Me permiti passar batom, fazer as coisas que eu sempre quis fazer desde quando era criança. A arte salvou a minha existência, sabe? Em momentos que eu estava muito triste, colocar isso para fora através de uma pintura, de um desenho, foi fundamental".
No ambiente da universidade, porém, a transfobia começou a afetar sua saúde mental, ao ponto de fazê-la abandonar o curso.
Seu nome social, de mulher travesti, era negado e insistiam em se referir a ela pelo nome de registro. Com a transição de gênero, estágios e oportunidades também diminuíram. Uma vez, lembra, um professor a chamou para conversar. Ela chegou a ficar ansiosa, pensando que seria sobre alguma pesquisa. No fim, ele queria perguntar se a família estava de acordo com o “rumo” que ela estava dando para sua vida.
Com algumas portas se fechando, ela começou a acompanhar feministas no YouTube e traçar outros planos. No final de 2015, Rosa gravou um vídeo de rap no barraco onde morava. A publicação passou de 100 mil visualizações e chegou a artistas conhecidos do Brasil.
"Criei o canal no YouTube por que eu poderia conversar com as pessoas para desmistificar a minha identidade, a minha transição e o tipo de arte que eu fazia."
Ainda assim, ela pondera sobre a visibilidade que tem recebido: "As pessoas tentam me colocar nesse lugar de quem fala pela comunidade trans. Eu defendo outras coisas, como proporcionalidade e representatividade. Não quero ocupar o lugar de heroína. Angela Davis fala que em certo momento na luta antirracista nos Estados Unidos começaram a pintar alguns ativistas como heróis e invisibilizar outros. Precisamos ficar atentos a isso. Às vezes, querem nos colocar no topo para invisibilizar quem não está no padrão aceito pela sociedade".
Ser travesti
O Brasil é apontado como país com mais assassinatos de transexuais e travestis no mundo. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), foram registrados 124 assassinatos entre essa população no ano de 2019. O México, segundo lugar do ranking, registrou cerca da metade de casos.
Outro levantamento, da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), aponta que 73% das pessoas não-heterossexuais já foram agredidas na escola, atingindo especialmente travestis e transexuais.
Em um país hostil a pessoas como ela, Rosa Luz se identifica como travesti: "Eu olhava as referências de pessoas trans muito marginalizadas na adolescência. Eu poderia ser qualquer coisa, menos travesti. No começo, eu me afirmava mais como uma mulher trans, mas depois eu comecei a reivindicar o lugar da travestilidade na minha existência. Comecei a me identificar com as travestis. É uma identidade de gênero, não uma questão de performance".
Ela diz que se sentia mais aceita quando se identificava como mulher trans, já que as pessoas costumam entender o mundo por um padrão cisgênero e binarista (pelos gêneros masculino e feminino apenas).
Não há um consenso sobre o que é ser travesti, diz Rosa. A pauta ainda é discussão entre as próprias pessoas que assim se identificam. Mas ela avalia que assumir essa identidade é também um lugar político, uma forma de reivindicar os direitos humanos dessa população: "Cada um pode entender de uma forma diferente. Para mim [trans e travesti] são quase sinônimos, eu afirmo com frequência que eu sou uma mulher trans e travesti. Tem outras pessoas que não são assim. Gosto do que a Linn da Quebrada [atriz, cantora e compositora brasileira] diz, que acredita na possibilidade de termos milhares de identidades de gênero, já que existem milhares de pessoas, como se cada corpo fosse um universo".
Brasil 2020
Sobre as ameaças que a afastaram das redes, Rosa conta que muitas pareciam vir de ataque orquestrado por meio de robôs, os quais tem se tornado comum no Brasil. Os ataques a ela, avalia, são reflexo da vida política brasileira atual: "E se tivessem, de fato, me matado? Houve muito silêncio em relação ao que aconteceu comigo. No último mês, um artista trans e negro de São Paulo, o Demétrio Campos, cometeu suicídio. Ele precisou morrer para as pessoas olharem para ele e para a arte dele. Eu fiquei observando isso de longe e percebendo as contradições".
Dos planos para a frente, Rosa pretende seguir trabalhando com música e artes visuais e formas de renda que a ajudem a manter independência: "Hoje eu só quero achar uma forma de continuar produzindo minha arte sem ser silenciada e não necessariamente chegar ao topo ou ter muitas visualizações. Não é sobre isso. Eu prefiro morrer a estar silenciada".
*Gabriel Galli é jornalista.
*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.