Vidas negras importam. Pra quem?, por Tamires Gomes Sampaio

"Vidas negras importam para quem? A construção de uma sociedade antirracista é um processo contínuo, não se inicia e nem termina com essas manifestações"

Tamires Gomes Sampaio (Foto: aquivo pessoal)
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Por Tamires Gomes Sampaio*

Organização do poder para a produção da morte de pessoas negras e periféricas. Isso é a necropolítica no Brasil, que tem sido cada dia mais escancarada com as denúncias nas manifestações Vidas Negras Importam. Esses atos explodiram nos últimos dias em diversas cidades no mundo inteiro após o assassinato de George Floyd por um policial nos EUA.

Estamos vivendo uma crise sanitária sem precedentes na história recente, o coronavírus já infectou mais de 6 milhões e matou mais de 390 mil pessoas no mundo inteiro. Estamos, no Brasil, iniciando o quarto mês de quarentena. Mais de 8 milhões de pessoas já perderam o emprego, o sistema de saúde entrou em colapso em diversas cidades e perdemos mais de 36 mil vidas (sem contar a subnotificação).

Enquanto isso, o governo Bolsonaro, que está sem ministro da Saúde há mais de duas semanas, resolve “combater” o coronavírus tirando do site do Ministério da Saúde dados atualizados que explicitam o número de contaminados e mortos pela Covid-19 no Brasil, assim como todo o histórico desses dados desde o início da pandemia. Como se, ao apagar os dados, o problema fosse resolvido. Ele se utiliza de táticas negacionistas de governos que acobertaram dados de mortes em diversos momentos de nossa História, como os desaparecidos políticos da ditadura militar no Brasil e como os governos fascistas que ocultavam informações de mortos nos campos de concentração pela Europa. O governo Bolsonaro é um governo notavelmente autoritário, fascista e genocida, em seu discurso e em sua prática. Bolsonaro está colocando milhões de brasileiros em risco e deve ser combatido até sua queda.

A crise econômica e social, que já era realidade em nosso país pela má gestão do Ministério da Economia, se intensificou diante desta pandemia. A renda básica emergencial, aprovada depois de muita luta dos movimentos sociais e da bancada progressista no Congresso Nacional, não deu conta das milhares de famílias que viram a fome bater à sua porta. Além disso, essa medida acabará agora em junho e o ministro Paulo Guedes já anunciou que diminuirá o valor do benefício, que já não é suficiente. Ao não garantir políticas públicas de inclusão e medidas rígidas para o cumprimento da quarentena e do isolamento social, o governo Bolsonaro fez com que o Brasil se tornasse o país com os piores índices de enfrentamento ao coronavírus no mundo, virando piada internacional e sendo usado pelo mundo como um exemplo do que não se fazer, de má gerência. Neste mês de junho, caso as medidas necessárias tivessem sido tomadas desde o começo, poderíamos estar agora como outros países, retomando as atividades com segurança.

No Brasil, o isolamento social não está sendo cumprido por aqueles que se não saírem de casa para trabalhar não terão o que comer à noite. Por isso, as periferias não pararam, os transportes públicos estão lotados, o número de casos confirmados e mortes aumentam todos os dias, mas as cidades não param.

Apesar de tudo, o coronavírus não é o principal fator de risco da maioria da população brasileira, que é preta e periférica: João Pedro foi assassinado pela polícia do Rio de Janeiro dentro de casa. João Vitor foi assassinado pela polícia ao entregar cestas básicas em uma iniciativa de solidariedade. Miguel morreu ao cair do prédio em que a mãe trabalhava porque a patroa não se importou com ele enquanto sua mãe trabalhava. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, a morte está presente no dia a dia da população negra em nosso país.

Como se proteger do coronavírus em um país que crianças negras são assassinadas dentro de casa? O racismo é uma técnica de poder, é um sistema que desumaniza, criminaliza, encarcera em massa, extermina e justifica o genocídio da população negra diariamente.

Vidas negras importam para quem? A construção de uma sociedade antirracista é um processo contínuo, não se inicia e nem termina com essas manifestações. A mobilização é importante para a denúncia, mas a conquista do poder para que haja a transformação dessa estrutura racista só acontece com organização permanente. Foi assim que a escravidão foi abolida no Brasil, que as leis Jim Crown foram derrubadas nos EUA, que o apartheid acabou na África do Sul e é assim que combateremos o genocídio da população negra, não só no Brasil, mas em diversos países no mundo.

“Faremos Palmares de Novo” não é só uma palavra de ordem, é uma prática diária.

*Tamires Gomes Sampaio é advogada, mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e militante da Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN)

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum