Por Paulo Henrique Oliveira Lima*
O debate sobre as alianças e a conformação de frentes vem ganhando importância e espaço. Há uma cristalização em duas posições tidas como alternativas - construir uma frente ampla antifascista ou construir uma frente de esquerda. Há uma terceira que trata as duas e seus diferentes papeis como concomitantes. Dentro desse debate há um texto do comunista búlgaro George Dimitrov: o documento “A unidade operária contra o fascismo”, que é em verdade seu “Informe apresentado ante ao VII Congresso Mundial da Internacional Comunista”, realizado em agosto de 1935.
Em épocas de enfrentamento ao neofascismo, penso que é muito importante conhecer tanto a teoria, como as experiências concretas de enfrentamento ao fascismo.
Por que digo isso? Se nos apropriamos da teoria revolucionária sem compreendermos minimamente os processos históricos, corremos o risco de termos uma relação dogmática com a teoria, acabamos por tratar o marxismo como um "livro sagrado" e ter a mesma postura fundamentalista que alguns agrupamentos religiosos possuem com a interpretação de suas respectivas "bíblias", que no fundo é acreditar que a teoria é a realidade. E não perceber que a realidade é sempre mais complexa que a teoria.
Estes companheiros e companheiras apresentam o informe de Dimitrov como justificativa de sua posição restrita de defesa de uma frente de esquerda ao combate ao neofascismo e como combate a tese que acredito correta, da justa combinação das frentes de esquerda e ampla neste combate.
De antemão, quero advertir que o documento apresentado é um informe de Dimitrov ao VII Congresso da Internacional Comunista, em 1935. E como tal deve ser compreendido. Digo isso para que não caiamos numa interpretação positivista do documento histórico. Como diria o célebre historiador francês, Marc Bloch: "as fontes não falam por si, precisam ser problematizadas”.
Portanto, é preciso problematizar: a) Este documento representa uma inflexão na linha política da Internacional? Qual era a linha política anterior? Partindo do pressuposto que é uma inflexão, esta nova linha política sofreu resistência/críticas? Frente única operária é a mesma coisa da Frente Popular Antifascista? Vamos às questões:
O referido VII Congresso da Comintern – para utilizar uma expressão mais íntima – marca uma viragem na linha política da Internacional. A linha política anterior, do chamado "Terceiro Período", tem como contexto o triunfo do stalinismo na União Soviética e aposta de uma crise "terminal" do capitalismo em nível internacional, na qual os comunistas deveriam fazer o combate de "classe contra classe", ignorando as contradições entre as frações burguesas e tratando as outras organizações com vínculos com os trabalhadores, como influência da burguesia e do fascismo no movimento operário. Daí surge a célebre expressão "social-fascismo" para designar a social-democracia alemã. Ou a social-democracia é a mão esquerda do fascismo, etc.
Há uma boa literatura historiográfica sobre os gérmens da Frente Popular. O Fernando Claudín, crítico feroz do stalinismo, atribui esta inflexão, a percepção de Stalin após o triunfo eleitoral do partido Nazista no Reichtag, que culminará na nomeação de Hitler como chanceler em 1933. Esta percepção partiu da compreensão de que Hitler não respeitaria o pacto estabelecido durante a 1ª Guerra Mundial em Brest, e que avançaria sobre território soviético. Portanto, para fugir do isolamento, Stalin e os demais dirigentes da IC percebem a possibilidade do triunfo de uma coalizão ampla na França, o que evitaria um isolamento da União Soviética. É este o contexto histórico, marcado pelo triunfo do Nazismo na Alemanhã, que determinará a adoção de uma inflexão política na Internacional, de caráter defensivo.
No entanto, havia um grande "bode" na sala: a unidade da esquerda. Como fazer essa inflexão sem enfrentar de forma crítica a linha política anterior, de classe contra classe e do social-fascismo? Por isso a formulação de Dimitrov sobre Frente Popular tem como base a Frente Única Operária, ou seja, a unidade entre socialistas, social-democratas e comunistas. Mas como esta inflexão não poderia ser feita sob a forma de uma crítica a linha política anterior, compreensível em tempos de triunfo do stalinismo, ela aparece como algo dado, natural, mas não o era.
Para quem acredita que a Frente Única Operária e Frente Popular são as mesmas coisas, vale a pena uma leitura mais rigorosa do referido documento. Em sua página 37, no primeiro parágrafo do tópico Frente Popular Antifascista, Dimitrov fala:
"Na mobilização das massas trabalhadoras para a luta contra o fascismo, temos como a tarefa especialmente importante a criação de uma extensa frente popular antifascista, sobre a base da frente única proletária. O êxito de toda a luta do proletariado com os camponeses trabalhadores e com as massas mais importantes da pequena burguesia urbana, que formam a maioria da população, mesmo nos países industrialmente desenvolvidos".
Será um erro ortográfico? Acredito que não. Este parágrafo aparece de forma nítida e inequívoca a tese das "duas frentes" contra o fascismo. A frente única proletária, ou seja, a frente de esquerda é a base para a frente popular antifascista, uma frente mais ampla.
Porque então Dimitrov fala em termos de classes e frações de classe e não explicita suas representações políticas? Toda inflexão ou viragem numa linha política é complexa e traz suas contradições e dificuldades. Dimitrov, ao meu ver como uma estratégia de debate e convencimento no Congresso da IC, prefere utilizar o aspecto social de composição das frentes do que suas representações políticas. No entanto, para que não tenhamos dúvidas vale recuperar o tópico "Problemas Básicos da Frente Única em Alguns Países", mas especificamente o primeiro parágrafo do subtópico França:
"A França é, como se sabe, o país cuja classe operária há a todo o proletariado internacional exemplo de como é preciso lutar contra o fascismo. O Partido Comunista Francês pode servir a todas as Secções da Internacional Comunista de exemplo de como se deve levar a cabo a tática da frente única, e os operários socialistas franceses podem servir de exemplo do que devem hoje fazer os operários social-democratas dos demais países capitalistas em luta contra o fascismo. A significação da manifestação antifascista celebrada em Paris a 14 de julho deste ano, na qual tomaram parte meio milhão de homens, assim como as numerosas manifestações efetudas em outras cidades da França, é enorme. Isto já não é simplesmente um movimento da frente única operária: é o começo de uma ampla frente de todo o povo contra o fascismo.
Do ponto de vista prático, isso significou uma aliança entre os comunistas e socialistas franceses com o partido radical na França, que é um partido de centro-direita dirigido/hegemonizado por setores burgueses, mas com certa base popular e nas classes médias.
Obviamente esta inflexão da Internacional não foi fácil, e não poucos setores internos a Internacional, como também externos (trotskistas) a acusaram de traição, capitulação à democracia burguesa, etc. Mas um ponto fundamental unifica no debate histórico, tanto defensores dessa política, como o historiador Eric Hobsbawn e o filósofo Domenico Losurdo, como os que dela divergiam, como o comunista português Francisco Rodrigues, e, mesmo os críticos do stalinismo, como Fernando Claudín: o tocante ao caráter amplo da Frente Popular. Portanto, no debate historiográfico essa é uma questão já superada. Só se nos apegarmos ao texto/documento, sem compreendermos o contexto histórico é que podemos deduzir de que Dimitrov defende uma política exclusiva de frente de esquerda contra o fascismo.
Por fim, vale destacar que por mais importante que tenha sido a inflexão política na Internacional, as Frentes Populares foram derrotadas na Espanha e na França devido ao Nazismo. No primeiro caso, devido a intervenção direta do nazismo na Guerra Civil Espanhola, no segundo pelas contradições da frente popular francesa e o apoio a grupos de extrema direita pelo nazismo.
Na década de 40, no decorrer da Segunda Guerra, as Frentes Populares foram se ampliando, tornando-se inclusive mais amplas, “nacionais”, etc. Daí surge a aliança com Churchill na Inglaterra, e com De Gaulle na França, célebres anti-comunistas e colonialistas de primeiro pronto. O que não deixou de trazer contradições para o movimento comunista internacional, em especial, os comunistas negros vinculados ao movimento pan-africanista.
No entanto, diante da compreensão de que Hitler e Mussolini queriam colonizar todo o mundo, inclusive a União Soviética, exterminando judeus, negros, ciganos, LGBT's, mas também comunistas, socialistas, social-democratas e todos aqueles que se opusessem ao seu projeto de dominação colonial, era preciso unir amplos setores “contra esse inimigo comum”.
Contraditoriamente, foi o triunfo na Segunda Guerra Mundial que possibilitou nas palavras do filósofo italiano Domenico Losurdo, a “Grande Revolução Anticolonialista”, com a descolonização do continente africano e asiático. Os povos oprimidos pelo colonialismo britânico e francês, convocados a lutar na guerra contra o nazifascismo, após a vitória contra esse “inimigo em comum” puderam apontar suas armas contra seus senhores coloniais.
*Paulo Henrique Oliveira Lima é historiador e militante da Consulta Popular
*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.